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quinta-feira, 1 de março de 2012

O passado não conhece o seu lugar, está sempre presente



Responsabilização
O Christopher Hitchens disse certa vez que se fizera uma promessa: não leria mais nada escrito pelo Henry Kissinger até que fossem publicadas suas cartas da prisão. O Hitchens já morreu, o Kissinger continua escrevendo (seu último livro é sobre a China) e são poucas as probabilidades de que venha a ser julgado, o que dirá preso, pelo que aprontou – no Chile e no Vietnã, por exemplo. Sua posteridade como estrategista geopolítico e conselheiro de presidentes está assegurada, ele morrerá sem ser responsabilizado por nada e não serão seus inimigos que escreverão seu epitáfio.

O juiz espanhol Garzón, aquele que mandou prender o Pinochet, estava mexendo com o passado franquista da Espanha, também atrás de responsabilização, e bateu de frente com a reação. Recorreram a um tecnicismo de legalidade duvidosa para barrá-lo. Lá também se invoca uma Lei da Anistia para impedir uma investigação dos crimes da ditadura. Anistia não anula responsabilização. A partir do tribunal de Nuremberg que julgou a cúpula nazista no fim da II Guerra Mundial, passando pelos julgamentos de tiranos em cortes internacionais desde então, o objetivo buscado é a responsabilização, que não tem nada a ver com retribuição, vingança ou mesmo justiça. Até hoje discute-se a legalidade formal, de um ponto de vista estritamente jurídico, dos processos em Nuremberg, mas era impensável, diante da enormidade do que tinha acontecido, e sob o impacto das primeiras imagens dos corpos empilhados nos campos de concentração nazistas recém liberados, que eles não se realizassem. Alguma forma de responsabilização era uma necessidade histórica. Com alguma grandiloquência se poderia dizer que a consciência humana a exigia.

A tal Comissão da Verdade que se pretende no Brasil responderia à mesma exigência histórica, além da necessidade de completar a história individual de tantos cujo destino ainda é desconhecido. A julgar pela rapidez com que, aos primeiros protestos de evangélicos e bispos católicos, o Gilberto Carvalho correu para lhes dizer que a posição do governo em relação ao aborto continuaria retrógrada como a deles, pode-se duvidar da disposição do governo para enfrentar a reação que virá, como na Espanha do Garzón, ao exame do nosso passado e à responsabilização dos seus desmandos. Vamos torcer para que, neste caso, a espinha do governo seja mais firme.

Pois, sem responsabilização, as histórias ficam sem fim, soltas no espaço como fiapos elétricos, e o passado nunca vai embora.
Artigo de Luis Fernando Veríssimo, publicado hoje no jornal O Globo.

"O passado não conhece o seu lugar, está sempre presente" - é uma das frases definitivas de Mário Quintana, o maior poeta menor do Rio Grande do Sul.  


3 comentários:

Anônimo disse...

E a responsabilização de Fidel Castro e dos apoiadores morais do comunismo chinês e russo, sr. Veríssimo?

Os ditadores da América do Sul só existiram em reação aos guerrilheiros comunistas que desejavam criar novas Cubas, ou é mentira?

Anônimo disse...

Exatamente, caro amigo (anônimo, 02/03/12, 18:34): você utilizou a palavra-chave suprema(num belíssimo ato falho, aliás): "REAÇÃO"... rsss

Guilherme disse...

Bom texto, evitou o lugar comum de que "o mundo todo menos o Brasil já fez isso", o que seria uma enorme mentira visto que os agentes torturadores da KGB estão bem felizes no governo Putin (para ficar em 1 exemplo). Aliás, a estrela comunista voltará a ser usada, fale com amigos Ucranianos, Romenos, Tchecos entre outros que viveram sob o regime comunista e pergunta o que eles acham disso tudo, talvez eles adorariam uma "comissão da verdade" (nome infame) nos países da ex- URSS, mas isso é uma utópia cabeluda, não? Já a comissão da "verdade" do Brasil mais me parece uma tentativa de reafirmar um revisionismo histórico de que existiram vilões (os generais, insanos matadores) e os mocinhos jovens que com flores nas mãos e canções de Buarque na cabeça que pululavam pelas ruas com mensagens de paz, amor e democracia. Isso é uma grande e fedorenta mentira: do lado dos generais sanguinários existiam soldados e famílias aterrorizadas com a ameaça do comunismo (que sim, foi maximizada, virada e destripada pelos militares para ser usada como pretexto para tolir liberdades civis). Mas a ameaça existia E ERA REAL, ali pelos dias do golpe de 1964 uma das maiores e mais importantes cidades do mundo estava sendo cercada pelos LUNÁTICOS da URSS, onde DENTRO da INSANA URSS as liberdades políticas e direitos humanos não eram nem comentados, quiçá desfrutados. E entre os jovens que lutavam por democracia existiam pessoas que acreditavam naquela besteira de que o comunismo seria uma idéia interessante em oposição à dominação americana, ou ao capitalismo ou à opressão religiosa ou [coloque aqui uma entidade que não pode ser pessoalizada mas tu acredita ser a causa dos problemas da humanidade]. Essas pessoas eram financiada pelos mesmos caras que matara M I L H Õ E S em campos de concentração, metralharam milhares que tentavam FUGIR PARA A LIBERDADE para fora da URSS, enfim. Não era briga de bem x mal, eram 2 ideologias, só que aqui no Brasil, uma delas tinha a máquina do Estado. Anos se passaram, umas centenas de pessoas morreram/foram torturadas/desapareceram no Brasil e isso foi horrível e descabido. Algumas dessas pessoas ganharam indenizações do governo, outras hoje estão milionárias sem nunca terem aberto uma empresa de sucesso, ficaram assim somente com trabalho público, outros nem um nem outro: sofreram e morreram pobres e miseráveis. Hoje essa mesmíssima máquina de Estado está funcionando agora para disseminar a verdade. Quando a "verdade" do governo combina com a MINHA verdade, talvez seja legal. Mas a "verdade" do governo para mim é uma mentira. Não quero criar filhos que imaginam que em 1960 o Brasil viveu a luta do bem contra o mal. Se somente um lado for responsabilizado, será a insitucionalização de um conto de fadas.

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