A década do desencanto
Cada época tem um afeto que lhe caracteriza.
Nos anos noventa, ele foi a euforia: marca de um mundo
supostamente sem fronteiras, pós-ideológico e animado pelas promessas da
globalização capitalista. Na primeira década do século 21 os ataques
terroristas aos EUA conseguiram transformar o medo em afeto central da vida
social. O discurso político reduziu-se a pregações, cada vez mais paranoicas,
sobre segurança, perda de identidade e fim necessário da solidariedade social.
No entanto, 2011 começou com uma mudança fundamental na
dimensão afetiva. Pois novos laços sociais paulatinamente apareceram levando em
conta a força produtiva do desencanto. Este é um dado novo. Desde o final dos
anos 70, as sociedades capitalistas não tinham mais o direito de acreditar na
produtividade do desencanto. Fomos ensinados a ver, no desencanto, um afeto
exclusivamente ligado aos fracassados, depressivos e ressentidos; nunca aos
produtores de novas formas.
Em "Suave é a Noite", Scott Fitzgerald apresenta
um de seus personagens dizendo que sua segurança intacta era a marca de sua
incompletude. Tal personagem nunca sentira a quebra de suas certezas, a
desarticulação de seus valores, por isto ele continuava incompleto. Ele não
tinha o desencanto necessário para explorar, sem medo, a plasticidade do novo.
Os novos personagens que entraram em cena na política
mundial a partir deste ano não têm esse problema. Aqueles que transformaram
2011 no ano das revoltas sabem que todo verdadeiro movimento sempre começa com
a mesma frase: "Não acreditamos mais". Não acreditamos mais em suas
promessas de desenvolvimento social, de resolução de conflitos dentro dos
limites da democracia parlamentar, de consumo para todos. Sempre demora para
que tal frase se transforme em um: "Agora sabemos o que queremos".
Tal demora é o tempo que o desencanto exige para maturar sua produtividade.
Como sempre, essa maturação chegará quando menos esperarmos.
Mas todo acontecimento vem sempre acompanhado de um
contra-acontecimento. Se o grande acontecimento de 2011 foi essa nova economia
afetiva no campo político, o grande contra-acontecimento ocorreu na Grécia e na
Itália: a expulsão dos políticos do centro de decisão em prol de meros
estafetas do sistema financeiro.
Como se, de um lado, tivéssemos em marcha a dinâmica de
reconstrução do político. De outro, sua anulação completa através da falácia
gerencial de empregados do Goldman Sachs travestidos de primeiros-ministros.
Estas são as duas vias às quais a década que agora nasce será confrontada.
Artigo do professor Vladimir Safatle, da Filosofia da USP.
Publicado hoje na Folha.
3 comentários:
olha, o tempo ajuda a gente em algumas coisas, e uma delas é a não se deixar levar por algumas impressões sobre o passado. vamos combinar que tentar tirar algum movimento político relevante na década de 1990 é uma tentativa inútil. pois é assim que autor começa o texto. ainda verei alguém, lá do ano 2015, mais ou menos, falar que no início do século XXI as pessoas eram mais politizadas que agora (2015). mania de idealizar o passado. a década de 90 foi desértica, politicamente falando, assim como a de 80. idealizá-las só porque hoje parece que estamos ainda mais no fundo do poço não dá, né...
que tal contar as decadas do brasil, desde a segunda metade do seculo XX, com os anos terminados em 8? 1958, 68, 78, 88...o seculo termina ai, com a constituinte, daih em diante apenas agoniza, mas a historia, apesar dos maus pressagios, continua, quem sabe as decadas significativas no seculo XXI, nao comecem em 2? 2002, 2012,...
eh a chamada crise de economia moral, os de baixo nao aguentam mais a situacao,os de cima nao conseguem mais manter a situacao tal como estah
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