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terça-feira, 10 de maio de 2011

Formando adolescentes ao sabor dos ventos



Um equívoco


O Ministério da Educação está prestes a cometer um grave equívoco. Na semana passada, o Conselho Nacional de Educação aprovou diretrizes "flexibilizando" o ensino médio. Tais diretrizes dão às escolas públicas e privadas autonomia para compor a grade curricular de seus alunos a partir de quatro obscuros eixos temáticos: trabalho, tecnologia, ciência e cultura.


Tal possibilidade de composição visa, entre outras coisas, favorecer o agrupamento de disciplinas, que se organizarão a partir de projetos comuns capazes de levar em conta os interesses específicos das comunidades nas quais as escolas estão inseridas.


As novas diretrizes ainda sugerem que a lei que aumenta em 20% o número de horas-aula leve em conta atividades fora da sala de aula.


O argumento para a primeira modificação é a adequação às particularidades. Uma escola em área industrial poderia, assim, dar mais ênfase a disciplinas como física e química. Certamente, para fornecer mão de obra mais adequada para as industrias locais.


Uma outra, estabelecida em área turística, talvez pudesse ensinar uma versão "Club Med" [foto] de geografia.


Vejam que interessante. Em um momento no qual se insiste na necessidade de formações capazes de abrir nossos alunos para realidades globais, resolve-se formá-los para trabalhar melhor na fábrica de tecidos da esquina. Como se eles passassem o resto de suas vidas no mesmo lugar.


Há de se perguntar se não necessitaríamos, na verdade, da definição de um currículo básico unificado a ser ministrado em todas as escolas e cuja aplicação adequada seria objeto de avaliação feita por uma inspetoria nacional.


Não creio haver alguém que discorde da importância de ensinar, de maneira aprofundada, as causas da Segunda Guerra, equações de segundo grau, o sistema literário brasileiro e as leis de Newton, em São Paulo ou em Roraima.


Podemos não estar de acordo sobre todos os conteúdos, mas se o Ministério da Educação ouvisse diretamente os professores, certamente ele seria capaz de criar um currículo básico que não colocaria nossos alunos à mercê dos caprichos do dia.


Tais caprichos ficam claros em ideias como "agrupamento de disciplinas". Trata-se de organizar os conteúdos através dos interesses mais imediatos, normalmente aqueles ligados a notícias que aparecem na imprensa.


Assim, se a notícia do mês é o terrorismo islâmico, então agrupa-se disciplinas de história, geografia etc. para "criar projetos" capazes de dar conta da curiosidade geral.


Se nada aparecer sobre "ditadura militar", então seus conteúdos serão secundarizados. O mínimo que se pode dizer é: triste o país que forma seus adolescentes ao sabor dos ventos.


Artigo do professor Vladimir Safatle, do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Publicado hoje na Folha.

6 comentários:

Remindo disse...

Feel, teu professor é do tempo do Getúlio. Milhares de professore já dão aula assim, usando os acontecimentos do dia para criar um vínculo com o estudante e com a realidade. A vida corre ao sabor dos vetos. Os ventos de 64 torturavam os brasileiros, os de 2011 os esclarecem. Abraços.

Anônimo disse...

Sou fã dos comentários políticos e culturais do Safatle, apesar de não compartilhar do gosto dele por Badiou-Lacan e a tal paixão do negativo. Mas quanto a este último artigo, sinceramente, não entendi a preocupação dele; parece uma coisa de classicismo francês, aquela coisa unificadora e tradicional, sei lá. Acho que feitos os ajustes e garantidos conhecimentos sobre os assuntos que ele usou de exemplo, ditadura e segunda guerra, o MEC está no caminho certo. Veremos.

Gabriel Brust disse...

Essa medida do MinE é uma das raras a ser criticada tanto pela esquerda (aqui e em outros blogs) quanto pela direita (Reinaldo Avezedo). É consenso de que é preciso haver uma política séria de educação para o Ensino Medio.

Alexandre Haubrich disse...

O idela é a mistura do universal com o local, a utilização de elementos locais pra entender e intervir sobre as realidades universais, amplas. Por um lado, padronizar demais ignora as fortes particularidades regionais que temos no Brasil. Por outro lado, como diz o artigo, o foco exagerado no localismo serve apenas para criar mão de obra especializada. É a transformação do Ensino Médio em Escola Técnica, menina dos olhos do governo Lula/Dilma e exemplo claro da atual política social: dá o peixe e às vezes ensina a pescar, mas não ajuda a entender o porquê de se pescar assim e nem deixa o cidadão decidir se quer pescar ou caçar. Em palavras menos óbvias, facilita a ascenção social, mas não abre caminhos de autonomia e politização.

elektrofossile disse...

por pouco não mandei essa matéria para o meu orientador de estágio em Ensino de Sociologia da velha federal do RS.
re-li e me chamou atenção a quantidade de -issemos ou de -ossemos.
não fosse por aí, gosto de suas preocupações. importantes os ósculos colocados. mas a forma é primordial.
então, desisti.
vamos formular?
bj e carinhos

Anônimo disse...

"Os ventos de 64 torturavam os brasileiros, os de 2011 os esclarecem." --- Perfeitíssimo, Doutor "Remendo": esclarecimento ao sabor dos ventos...

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