Colapso moral
Aqueles que se veem como excluídos da sociedade não têm razão alguma para obedecer às suas normas.
Eis uma colocação trivial que qualquer habitante de metrópoles brasileiras aceitaria. Conhecemos bem tal situação social onde a exclusão e a falta de perspectiva gera a descrença (no melhor cenário) ou a violência (no pior) contra o império das normas sociais.
Muitos gostariam de chamar isso de "sociologismo vulgar", como se fosse questão de afirmar que onde há pauperização sempre haverá crime.
Talvez seja o caso de simplesmente dizer que a pauperização e o sentimento de ter sido deixado de lado pelo Estado gera, de maneira forte, a desagregação do laço social.
Quando não há nada que sirva de contrapeso a tal processo, é fácil começar a ver carros queimados, lojas quebradas e outros atos de vandalismo.
Nesse sentido, há algo de profundamente cômico em ouvir o premiê britânico, David Cameron, afirmar que a Inglaterra está vivendo um "colapso moral" e que devemos colocar os confrontos em Londres e em outras cidades na conta da ausência de valores como "espírito de equipe, decência, dever e disciplina".
Sim, as escolas e as famílias não ensinam mais esses grandes valores, mas, segundo o primeiro-ministro, em seu papel de último esteio moral da ilha, "desencorajam o trabalho" e fornecem "direitos sem responsabilidade". Por muito pouco, não fomos brindados com a ideia inovadora de que as altas taxas de desemprego eram fruto da "preguiça".
Alguém deveria ter dito a Cameron que ele não é exatamente um bom enunciador contra o colapso moral britânico, ainda mais depois de um de seus principais assessores ser pego envolvido no escândalo que expôs as relações incestuosas entre a política britânica e o magnata da mídia Rupert Murdoch.
Da mesma forma, quando seu governo destrói todo o resto de sistema público de educação e de assistência social após ter pago (com o beneplácito de seu partido) a conta de bancos responsáveis pela crise de 2008, há de se perguntar se o colapso moral vem da City ou de Tottenham.
Pelo menos Cameron mostrou o que o pensamento conservador pode nos oferecer hoje: ladainhas morais em vez de ações enérgicas contra os verdadeiros arruaceiros, ou seja, esses que operam no sistema financeiro internacional.
Enquanto isso não ocorrer, jovens roubando lojas de iPads e tênis continuarão dizendo: não aceitaremos estar fora do universo de consumo e sucesso individual que vocês mesmos inventaram. Nós entraremos nele, nem que seja saqueando.
Por isso, antes de cobrar responsabilidades de setores desfavorecidos da população, Cameron deve parar de tentar escapar de suas próprias.
Artigo de Vladimir Pinheiro Safatle, professor livre docente do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), especialista em epistemologia (teoria do conhecimento) e filosofia da música. Publicado na Folha, edição de terça-feira passada (16/8).
9 comentários:
perfeito!
Esse outro cara tb tinha constatado isso (em ingles):
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=DIyUQz6kEpA#!
ou como diria Francisco Buarque de Hollanda (infelizmente, irmão da Bruaca Ana, a des-ministra dos autoproclamados artistas sudestinos)num outro contexto mas vale de outra forma para este:
"abre teu coração
ou eu arrombo a janela!"
Pensar em termos simplistas de exclusão e inclusão, dá nisso- sociologismo vulgar mesmo...NÀO EXISTE EXCLUSAO. Estão TODOS no mesmo jogo e todos são atores necessários a realização do capital...Lucia Medeiros- Doutora em Educação UFRGS
Além de sociologismo vulgar é uma irresponsabilidade dizer que que quem está fora não tem compromisso...estamos TODOS embarcados!!! Não existem excluídos em relação ao capital...Esses intelectuais dualistas tem dificuldade de pensar em termos de paradoxo e dá nesses absurdos...imagina se porque não me acho abrigada pelo código penal saio matando??!!! Lücia Medeiros
Caro Tóia, o que o Sr. Vladimir Pinheiro Safatle disse no primeiro paragrafo é uma temeridade com a autoridade que ele tem! Oslo aconteceu assim!!! Lei existe para ser cumprida. É com lei que se vai buscar o que foi saqueado...senão é olho por olho, lei da selva!!! Não precisa publicar. Não sei porque estas tomando esta atitude...Meu abraço, Lúcia Medeiros
Também acho completamente irresponsável o que disse Safatle ( e sou leitor de seus artigos na Folha) no primeiro parágrafo. Não é assim que vamos construir o necessário mundo melhor e possível.
continuação...
E não é preciso ser nenhum gênio da raça para perceber isso. Por acaso esses jovens ingleses que participaram dos protestos, foram consultados, por exemplo, sobre a aplicado o dinheiro público arrecadado com os impostos? Ou sobre salvar banqueiros falidos que fizerem apostas temerárias em papéis podres? Ou financiar o complexo industrial militar e suas infindáveis guerras? Mesmo admitindo-se que tais jovens, dada a sua condição de marginalizados no processo, nem saberiam o que fazer com esse poder de decisão, se ele lhes caísse nas mãos.
Será que é tão difícil de compreender que o fato de alguém viver numa sociedade capitalista não o torna necessariamente um capitalista?
Há uma grande diferença entre ser um trabalhador assalariado ou mesmo autônomo e ser o dono do capital.
E há uma diferença maior ainda entre ser marginalizado e dono do capital. Assim como os últimos não se sentem comprometidos com a sorte dos marginalizados que o sistema patológico que eles operam produz como "resíduo" do seu funcionamento, os "riots", por sua vez, seja pela percepção instintiva ou racional de que nunca terão lugar nesse sistema, também não se sentem com o menor compromisso com uma "ordem" que os exclui. Mesmo que tenham um centavo para gastar e cumprir seu papel de "atores necessários a realização do capital".
Eugênio
continiação...
Falar a verdade seria muito pior. Significa, por exemplo, admitir que para manter seus "riots" bem armados e praticando sangrentos vandalismos mundo afora, Cameron precisa criar outros tantos "riots" em seu próprio país. Estes, infelizmente, pobres e desarmados. Pois, se do contrário fosse, Cameron e os interesses que representa seriam varridos do mapa.
Mesmo nos países mais ricos da Europa, observa-se claramente o esgotamento do modelo econômico adotado. A Inglaterra é o melhor exemplo. Um ex império colonial reduzido a uma ilha decadente, envolvido em três guerras. Duas delas, Iraque e Afeganistão com derrotas líquidas e certas. Na Líbia, aquilo que parecia poder ser resolvido com um golpe de mão, tem tudo para transformar-se em mais um atoleiro.
Mas, se o capataz primeiro ministro sonega a verdade, sempre tem alguém que a escancara. E as vezes no lugar mais inusitado. Pois não é que a Globo desencavou um sociólogo (um de verdade!!!), que lhe resultou num verdadeiro tiro pela culatra???
http://www.youtube.com/watch?v=HI1YSPHVeIA&feature=player_embedded
"Em vez de ações enérgicas contra os verdadeiros arruaceiros, ou seja, esses que operam no sistema financeiro internacional", Cameron faz pregações moralistas. E a Doutora parece ir pelo mesmo caminho, ao sentenciar que é com a com "lei que se vai buscar o que foi saqueado..." Buscar o que? Os tênis e os ipads? Ou os orçamentos nacionais, sangrados pelas guerras, pela corrupção e pela especulação financeira? Sobre isso, aliás, recomendo o documentário "Trabalho Interno", mesmo reconhecendo que muito espectador teria dificuldade de identificar naqueles senhores engravatados do mundo das altas finanças, os verdadeiros vândalos que colocaram o mundo na situação em que se encontra.
Assim, não é difícil de imaginar para onde foi o dinheiro cortado do sistema público de educação e dos programas sociais de assistência aos jovens ingleses de baixa renda. Esses mesmos, que agora saem as ruas para cobrarem sua parte. Apesar de não terem muita clareza disso, instintivamente percebem que naquela sociedade não há lugar para eles. Ao contrário do que aconteceu em maio de 68, onde havia uma intenção de promover mudanças sociais em profundidade, a maioria desses jovens querem apenas o seu lugar no exclusivo paraíso do consumo. O articulista deixou muito claro, para quem procura entender o mundo para além dos sofismas de ocasião, que tais distúrbios são apenas o indicativo de uma grande anomalia social. Portanto, não está implícito nem explícito no seu texto, qualquer incitamento a desordem.
Quem afirma o contrário quer forçar a barra e criar um pretexto, para justificar o uso da violência como o remédio de sempre contra o tal "paradoxo", deixando intactas suas causas. É a velha tática da direita, aferrada a seus privilégios e preconceitos.
Mas, vá que nos deixemos seduzir ou cometamos a temeridade de aceitar como verdade inquestionável o sofisma do estamos "TODOS no mesmo jogo e todos são atores necessários a realização do capital". Se todos os "atores" são "necessários a realização do capital", isso significa que todos tem algum poder ou alguma incidência sobre essa "realização", certo? Errado. O fato de que todos, seja como trabalhadores ou até mesmo como consumidores dos bens produzidos pelo trabalho, contribuam para a "realização do capital", não significa que tenham voz ativa no processo.
continua...
Se "pensar em termos simplistas de exclusão e inclusão, dá nisso - sociologismo vulgar mesmo" usar o sofisma de que "NÃO EXISTE EXCLUSÃO. Estão TODOS no mesmo jogo e todos são atores necessários a realização do capital" é simplesmente tosco e demonstra como a capacidade de análise da realidade está degradada em certos setores. Ainda mais, quando parte de alguém que, por dever de ofício, deveria ser mais criterioso no trato dessas questões de fundo que sacodem o mundo nesse momento.
Não é verdade que o autor esteja fazendo em seu texto a defesa ou apologia do vandalismo. Ao dizer que "Aqueles que se vêem como excluídos da sociedade não têm razão alguma para obedecer às suas normas." ele apenas constata o óbvio. Óbvio para quem consegue ver um pouco além das vitrines quebradas.
O que Vladimir Pinheiro Safatle nos apresenta em seu artigo, é sua percepção da crise estrutural do capitalismo na Inglaterra e de como a sociedade, ou parte dela, pelo menos, está reagindo. Noutros lugares, essa crise também se faz sentir, com é o caso da Espanha ou do Chile, por exemplo, onde a reação está sendo diferente e mais organizada.
Mas, independentemente da forma como as sociedades reagem, o pano de fundo é sempre essa crise. Tentar abstrair esse dado e colocar a coisa toda como se fosse uma birra de "intelectuais dualistas" que "tem dificuldade de pensar em termos de paradoxo", mascara um evidente temor (ou terror) de classe pequeno burguês, de alguém que se apega a desgastada normatização da "ordem estabelecida" para tratar como caso de polícia esses "paradoxos". É não querer admitir que eles tem raízes profundas numa sociedade conservadora, racista e desigual como sabe muito bem ser a sociedade inglesa. Se isso acontece lá, também pode acontecer aqui, não é? Vá que a "negrada" invente de descer o morro?
Posso estar cometendo uma injustiça com a Doutora em Educação da UFRGS, mas o que ela nos oferece nos seus comentários é mais do mesmo. Tal como Cameron, ela demonstra que "o pensamento conservador pode nos oferecer hoje" apenas "ladainhas morais" do tipo "lei existe para ser cumprida", "senão é olho por olho, lei da selva!!!". Mesmo doutora? Mas que lei e para ser cumprida por quem?
E para que não fiquem dúvidas sobre o quanto a afirmação de Safatle sobre as "ladainhas morais" está correta, aqui vai uma pérola do próprio Cameron: "As crianças crescem sem saber a diferença entre certo e errado. Não tem a ver com pobreza, mas com cultura. A cultura de glorificar a violência, desrespeitar autoridades e saber tudo sobre direitos e nada sobre responsabilidades”. Que paradoxo!!!!
A abordagem da crise inglesa a moda David Cameron não surpreende. Surpreenderia se fosse diferente. O que se pode esperar da canalha conservadora?
É óbvio que o capataz dos interesses do mercado, metamorfoseado em primeiro ministro, sabe quais são as causas reais e profundas desses "badernassos". Ainda mais, sendo ele próprio um baderneiro profissional, um chefão de gangue. Pois seus "riots" não estão espalhados pelo Afeganistão, Iraque e Líbia fazendo "arruaças", travestidas de "guerras humanitárias"?
Ele sabe muito bem que não pode falar a verdade sobre as reais motivações desses jovens e só poderia abordar esses conflitos da forma como abordou. Fazer declarações imbecis como essa e passar por idiota, é o preço que precisa pagar para manter as coisas como estão.
continua...
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