Jessé Souza e a desigualdade social no Brasil: sobre o conhecimento e a emancipação
"Oh! Gentilshommes, la vie est courte. Si nous vivons, nous vivons pour marcher sur la tête des rois."
Oh! Gentis homens, a vida é curta. Se nós vivemos, nós vivemos para arrancar a cabeça dos reis.
(Shakespeare)
Para seguir o conselho de Shakespeare e arrancar a cabeça dos reis é preciso, no entanto, primeiramente apontar o constrangimento da sua nudez, e para isso, o saber é a única arma dentro do universos de possíveis do homem. O conhecimento é o pressuposto moral da liberdade. Condição sine qua non do desejo de emancipação do indivíduo. Não há nada mais revolucionário do que a busca pela emancipação e pela verdade.
A verdade desnuda, desimpedida, liberta dos grilhões culturais que cegam e nos impedem a apreensão da lógica dos processos sociais – no nosso caso, há de se dizer, esses grilhões culturais tomaram a forma de uma hierarquia moral míope, que além de míope é também cristã, heterossexual, machista, bélica, patrimonial, capitalista, individualista e que vem na esteira de toda a série de preconceitos e visões de mundo trazidas pelo homem europeu na empreitada colonial. Visões de mundo essas que terminaram por lograrem-se vitoriosas nos trópicos e em larga medida ainda ditam a maneira pela qual os homens tratam uns aos outros por aqui.
Como um farol que ilumina uma baía à noite e sinaliza a rota certa aos navios que vêm de alto mar, as ciências humanas já foram ferramentas mais importantes no processo de emancipação. Hoje, com a burocratização do capitalismo, que Weber já previa no início do século XX, elas parecem desencontradas nos corredores de um sistema acadêmico engendrado por uma lógica neoliberal, que patenteou o conhecimento e que teimosamente insiste em transformá-lo em um mero cálculo. Com o intuito de dar fim ao ócio – esse pesadelo do capitalismo – a lógica mercantil de ampliação de capitais deu luz a um sistema acadêmico que nos quita a criatividade e enquadra o pensamento.
Há milhares de teses e dissertações que colaboram para o acréscimo de pontuações dos programas de pós-graduação e a formação de mestres e doutores, mas que não necessariamente colaboram na melhoria do nosso debate público. As idéias, pobres em geral, reproduzem o que já foi dito: com uma roupagem acadêmica e um “charminho crítico” fazem muitas vezes a cabeça de parcelas importantes da população e dão a sustentação científica necessária para argumentos dos mais preconceituosos e conservadores da sociedade.
A modernização seletiva
No entanto, há ainda esforços que buscam desvendar as grandes escuridões que pairam no entendimento sobre nós mesmos. Desde o início dos anos 2000 o sociólogo mineiro Jessé Souza vem desenvolvendo uma série de pesquisas que propõem uma ruptura com a tradição do pensamento social brasileiro – tradição que o autor qualifica como ensaística e de uma sofisticação heurística duvidosa – e vem inovando criativamente – contundentemente, há de se dizer – a interpretação sobre a desigualdade no Brasil.
Em um dos seus primeiros livros sobre a especificidade do dilema brasileiro (“A Modernização Seletiva: Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro” Brasília: UNB, 2000.) Jessé empreende uma revisão teórica das contribuições mais importantes de Weber, Elias, Habermas e Taylor como que apresentando as armas teóricas, e logo em seguida apresenta o processo de modernização no Brasil como uma variação singular do desenvolvimento específico ocidental.
Ambicioso e cirúrgico, Jessé vai direto ao ponto: sugere que toda a tradição sociológica brasileira, que tem em seus pais fundadores a tríade Sérgio Buarque de Hollanda, Raimundo Faoro e Gilberto Freyre legou ao país o essencial do imaginário nacional. O de uma sociedade essencialmente plástica, personalista, patrimonial onde o capital social é a ferramenta por excelência da navegabilidade social que fundamenta o nosso pré-modernismo. Noutros termos, uma sociedade onde a herança ibérica colonial deitou raízes tão fundas que deu o tom do nosso próprio processo de modernização.
O Estado patrimonial é, em alguma medida, a práxis do catolicismo familiar baseado na preferência dos afetos que impede que a burocracia se racionalize e que o Estado horizontalize as relações entre os indivíduos e, portanto, a espinha dorsal da nossa formação social é defeituosa devido a influência de uma suposta herança portuguesa transoceânica e atávica que logrou se institucionalizar na Colônia. Todos os problemas da sociedade brasileira, portanto, estariam vinculados de maneira mais ou menos drástica a essa herança maldita, que contaminou tanto a burocracia que privatiza o Estado em seu próprio benefício e não consegue horizontalizar as relações, quanto os indivíduos que acreditam que a forma legítima de ascensão é a partir da flexibilização da lei e das normas, tornadas possíveis pela presença de um capital social que invade e faz – para os amigos - do impossível, possível.
Jessé sugere que o código valorativo dominante que se institucionalizou no Brasil é o código do individualismo moral ocidental. É o individualismo como pressuposto moral de todas as experiências e realizações culturais da modernidade. Noutros termos, só pode ser considerado legítimo e valorável (em termos de posturas, atitudes, comportamentos e leis) aquilo que seja justificável segundo as normas que regem o código valorativo do individualismo moral ocidental.
Esses valores, tornados corpo nos mais importantes espaços de socialização e afirmação individual no capitalismo contemporâneo – Estado e mercado – acabam por dividir os indivíduos mesmo antes do seu nascimento. Há, por um lado, os benefícios do mercado – tido como reino das virtudes, espaço meritocrático por excelência – aos indivíduos que lograram aderir à economia emocional burguesa, e por outro, a condição de subgente aos marginalizados de uma modernização seletiva.
A “dignidade” – que só é possível a partir da adesão a uma determinada estrutura psicossocial, muitas vezes irrefletida e no plano do inconsciente – parece se tornar o essencial do reconhecimento social infra e ultrajurídico, em outros termos, é ela que permite a eficácia da própria noção moderna do que é ser um cidadão.
A modernização seletiva só o é seletiva porque não logrou instituir no Brasil a todos os indivíduos as condições básicas para o alcance da cidadania: a economia emocional burguesa. Ou seja, a disposição para o trabalho, a capacidade de raciocínio calculista, a previsibilidade, a autodisciplina, o pensamento prospectivo, etc.
A grande questão é que as diferentes classes estão aparelhadas de maneira estruturalmente diferentes para o alcance dessas formas típicas de disposição psicossocial burguesa orientada para o trabalho, e, portanto, as possibilidades de se alcançar a cidadania são invariavelmente desiguais. Tampouco se viu no país, argumenta Jessé, a tendência à equalização. As profissões legítimas continuam sendo as que demandam uma maior familiaridade com a cultura legítima, e, portanto, continuam sendo privilégio de uma determinada classe, coincidentemente aquela que está em posse, afortunadamente, de maior capital econômico.
Os valores modernos e ocidentais como a predisposição ao trabalho e a adesão à economia emocional burguesa são os valores dominantes que ditam o tom das hierarquias sociais, fazendo com que a desigualdade apareça aos dominados como algo natural, fruto de um acaso desafortunado ou do próprio fracasso pessoal. E por isso, ainda mais eficaz, porque opera no plano simbólico e pressupõe um acordo tácito onde todos os indivíduos são constantemente avaliados.
A invisibilidade da desigualdade brasileira e a ideologia espontânea do capitalismo
Em “A invisibilidade da desigualdade brasileira” lançado pela editora da UFMG em 2006, o autor continua chamando atenção para a seletividade do nosso processo de modernização bem como os efeitos da importação – por parte da periferia – de modelos institucionais que não são resultados das suas próprias práticas sociais. Sendo assim, Jessé se vale do que há de melhor em termos de teoria social: o conceito sócio-cultural de classe de Pierre Bourdieu, a tematização do self pontual na modernidade de Charles Taylor e a teoria do reconhecimento de Axel Honneth para propor uma macroleitura sobre o Brasil.
A partir da pesquisa empírica com diversas pessoas em diversos lugares do Brasil, Jessé remonta a idéia de que o compartilhamento de uma determinada estrutura psicossocial passa a ser o fundamento implícito do reconhecimento social. O “não-reconhecimento” definido pela ausência da economia emocional burguesa -demandada pelo trabalho útil e competitivo - gera o não-reconhecimento público, e termina por levar também ao não-reconhecimento na esfera existencial, que lança milhões de brasileiros à situação de ausência de auto-estima individual, ao não-valor existencial fruto de um descompasso em relação ao seu lugar na “ética do desempenho”.
O autor ataca contundentemente os teóricos conservadores que insistem em sugerir classes sociais de acordo tão-somente com o nível de renda das famílias. No melhor estilo da sociologia crítica chama a atenção para a necessidade de se levar em consideração fatores que fogem da ordem econômica do indivíduo e que estão calcadas nas dimensões existenciais, morais e políticas, que muitas vezes remetem ao plano do subconsciente.
É no mínimo estranho considerar de uma mesma classe, pretensamente denominada classe “C”, um professor universitário no início de carreira, que possui alto investimento em capital cultural, gosto pelo consumo de bens simbólicos, e uma relação familiarmente estimulada com a cultura legítima – tida quase que como natural porque irrefletida e herdada afetivamente pelos pais desde a mais tenra idade– e, por exemplo, um trabalhador qualificado da indústria, que guiado por uma lógica ascética de trabalho duro ao longo da vida ascendeu socialmente mas que conserva vivamente as disposições herdadas de uma vida dada ao trabalho e com pouco tempo para “as atividades do espírito”.
Em outros termos: classe deve ser um conceito sociocultural que possa aglomerar os indivíduos de acordo com a sua práxis, posição no mundo e capacidades, muitas vezes inconscientes, de auto-reflexão e de enquadramento em uma estrutura social que transcende a eles e não tão-somente com a quantidade de dinheiro que cada um recebe ao fim de cada mês de trabalho.
O argumento de Jessé é que esses operadores simbólicos que, juntos com a moralidade moderna do trabalho útil e a constante avaliação dos indivíduos em termos de adaptabilidade ao trabalho produtivo acaba por construir um tipo de desigualdade muito afinada com o discurso liberal do Estado Democrático de Direito. Os próprios dominados parecem acreditar que as razões das suas misérias morais e existenciais estão nos seus próprios fracassos cotidianos.
A luta de classes já não é mais pautada pelo seu lugar no sistema de produção, mas sim pela oposição entre alma/razão – lugar por excelência da virtude dos dominantes – e o corpo – lugar das virtudes dos dominados. O próprio Estado e mercado que monopolizam virtualmente as chances de realização de vida de qualquer indivíduo decidem a partir do mito da meritocracia e da nova “ideologia espontânea do capitalismo”, quem são os classificados e os desclassificados.
Privilegia os indivíduos que atendem às demandas implícitas do Estado e do mercado com bons salários, com um bom status ocupacional e resguardam o desprestígio e o desrespeito social aos demais. O valor relativo dos indivíduos é medido de acordo com a sua capacidade ao trabalho útil – voltamos ao ócio, inimigo mortal da ideologia meritocrática – produtivo (porque disciplinado) e que não se restringe só a postura no trabalho.
A práxis do indivíduo moldado pelo mercado capitalista transforma em corpo as prescrições dos imperativos do mercado, e inscreve no corpo um determinado savoir-faire que vem à tona na maneira de andar, de falar, etc., e que distingue aqueles que são suporte de uma ética do desempenho e os que não o são. Os que servem para ascender no reino das virtudes que o mercado oferece e os que servem para ser subgente, ou como chamará Jessé posteriormente para serem “ralé”.
Fica mais do que evidente, portanto, que a desigualdade social brasileira muito antes de se relacionar tão somente ao capital econômico distribuído de maneira imoralmente desigual no Brasil está muito mais relacionada a determinadas idéias. Idéias essas que vieram na esteira de um processo de modernização às avessas, que acabou por eleger a adaptabilidade ao trabalho produtivo como parâmetro de valor diferencial entre os indivíduos.
O que existe hoje é um acordo tácito acerca do valor diferencial dos seres humanos que os hierarquiza de acordo com uma lógica do desempenho que estimula e premia a capacidade do desempenho objetivo e que por outro lado legitima o acesso diferencial permanente as chances de vida e a apropriação de bens escassos. Há de se notar nesse momento que a corrida para a apropriação de bens culturais e logo, de uma situação mais confortável na trama social já começa desigual antes mesmo do nascimento. Contrapondo-se irreconciliavelmente com a tradição sociológica brasileira que elege o capital social como a forma por excelência de navegabilidade social Jessé afirma – na esteira de Bourdieu - que o âmago da desigualdade está no capital cultural e econômico gerido pela família. São esses capitais que serão relevantes para a construção de um “corpo” habituado às imposições do mercado que irão estruturar uma determinada práxis – desde o sistema de crenças até o modo de caminhar e se portar – que vai alçar o indivíduo a uma situação de distinção ou de dominação no campo social e político.
São esses capitais, o cultural – a familiaridade com a cultura legítima que sugere uma determinada forma de pertencer e atuar no mundo - e o econômico – que possibilita o poder de pagar por viagens, cursos, boas condições de moradia e de existência -, portanto, que irão definir a posição do indivíduo na hierarquia social.
São eles que, estando em consonância com os padrões da hierarquia ocidental, darão o tom da avaliação pela qual os indivíduos são impostos diária e implicitamente em todos os segmentos de realização da sociedade e alocarão os seres humanos em posições privilegiadas ou não na luta pela apropriação diferencial dos bens materiais e simbólicos. Alvo último de todas nossas lutas diárias.
Artigo de Fernando Marcial Ricci Araújo, graduando em Ciências Sociais da UFRGS.
4 comentários:
Muito bom o artigo. O Jessé Souza está inovando e fazendo pesquisas interessantíssimas. Contribuindo para um entendimento mais rico das dinâmicas sociais brasileiras.
Apenas eu faria uma pequena observação: no início do texto o autor fala dos "grilhões culturais" de nossa sociedade, que seria cristã, machista, bélica e... homossexual... com certeza foi erro de digitação, on o correto seria "heterossexual"...
O artigo está bem, mas começa com um pequeno grande equívoco.
O texto citado em epígrafe não fala em arrancar (arracher) a cabeça dos reis, mas de caminhar sobre (marcher sur) as tais cabeças.
No original inglês, nem aparece o "cabeças", mas apenas "reis": "If we live, we live to tread on kings".
A intenção da fala da personagem é bem menos "republicana" ou "jacobina" do que poderia desejar o autor do texto.
Ao contrário, a idéia da personagem, de resto um cortesão, é de que, se "caminhamos sobre reis" é que devemos comportarnos como reis, ou seja, com "honra", idéia corroborada adiante com a referência a "morrermos com príncipes".
Abraço,
José Eduardo
O artigo é muito bom, e faço somente um reparo; quando o autor refere os "grilhões culturais" que nos tolhem, cita como uma das miopias a cristã. Creio eu que esta miopia, como bem colocada mais adiante, ao aludir "preconceitos e visões de mundo trazidas pelo homem europeu na empreitada cultural" foi e é essencialmente católica.
A visão que os holandeses no seu projeto de colonização em Pernambuco não deixou de ser cristã, mas com uma abordagem que não era a católica lusitana.
Aliás, que bizarro esse Shakespeare em francês, hein? Esse tipo de erro tira a credibilidade do resto do texto todo...
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