O debate sobre a reforma política requer um preâmbulo bem estruturado onde no centro do debate esteja a própria política, visando banir a hegemonia esgotadora do capital financeiro que nos subjuga há três longas décadas
Quem ainda acredita no mito do progresso, pode muito bem acreditar na lenda do Papai Noel, na infantilização comercial da festa religiosa da Páscoa cristã, etc. Está mais que provado que o avanço das tecnologias no auxílio à reprodução do capital não logra êxito mecânico nas esferas da democracia, da República e no fazer político.
O chamado “progresso” (um dos grandes fetiches do Iluminismo), por si só, não nos leva a lugar algum. Ao contrário, nas últimas três décadas, com o advento esmagador da hegemonia do capital financeiro globalizado, nós assistimos à erosão de muitas conquistas que tínhamos como definitivas. No campo dos direitos humanos houve retrocesso evidente, admitido até pelos que o violaram, como o governo dos Estados Unidos e seus aliados da Otan na Europa. Com a ameaça terrorista internacional (metade real, metade mito, criado justamente pelos interessados no retrocesso institucional) foram suprimidos diversos direitos individuais, forjados mecanismos de vigilância/controle/monitoramento dos cidadãos, o uso da tortura e da prisão ilegal sem processo de julgamento, vimos o reforço das bases militares dos EUA, hoje mais de mil unidades, nos cinco continentes, onde impera o arbítrio, a força bruta e as regras de ocasião.
Nos Parlamentos, seja no Brasil, seja nos EUA, na Europa, ou na Ásia, predominam os representantes dos grandes interesses econômicos aliados das estratégias geopolíticas que sustentam a força dos bancos de um lado, e um permanente clima de tensão internacional que contribui para as guerras de conquistas, especialmente de petróleo e gás, sustentado por lobbies da velha aliança industrial-militar que orientam a Casa Branca, desde sempre.
Para suprir ou mitigar a ilegitimidade político-institucional e o flagrante abuso do poder econômico que achata a cidadania e seus direitos violados e elege o consumidor como sujeito privilegiado da farsa democrática, avulta cada vez mais a força das midias e da publicidade contemporâneas no mundo todo.
Hoje, o chamado espaço público é cada vez mais o espaço da publicidade e da mídia – como porta-vozes e justificadores ideológicos de um mundo rarefeito de democracia mas coalhado de mercadorias, onde os direitos coletivos de cidadania cedem vez à mera capacidade individual de consumo. Discutimos (ou somos induzidos a fazê-lo) muito mais moda, tendências, novas tecnologias e gadgets da hora (iPod, iPad, artefatos inúteis) do que direitos fundamentais, voto, expressão política, garantia de conquistas, esgotamento da democracia representativa, etc.
Neste sentido, me parece que falta ao debate sobre a pretendida (e sempre adiada, pelos motivos acima referidos) reforma política esse grande preâmbulo introdutório do tema. Discutir reforma política, assim, solta no ar, suspensa sobre a névoa cinzenta das nossas interrogações e incertezas, me parece quase uma irresponsabilidade. A reforma política, mais que algumas modificações nas regras eleitorais e de representação parlamentar, deve significar a reintrodução da própria política no centro do debate contemporâneo, para bem além dos economicismos reducionistas pautados pela banca. Deve significar o deslocamento e o próprio banimento da hegemonia do capital financeiro, depois de trinta anos de esmagamento da política, substituída que foi pelos truques manjados dos econometristas de fórmulas matemáticas que nos legaram esse mundo em decomposição e ocaso.
Artigo de Cristóvão Feil, publicado originalmente na edição 31 da publicação impressa Jornalismo B, que circula em Novembro/2011.
Foto: quadro de Jean Michel Basquiat em galeria.
9 comentários:
Olha, com todo o respeito, o artigo é ingênuo. Acreditar que um dia neste processo chamado capitalismo ocorrerá o banimento ou a não participação ativa do capital financeiro que "ergue e destroi coisas boas" é a mesma coisa que acreditar a Eurodisney é a Europa. O coração, a essência do capitalismo são os bancos.São eles que financiam, que emprestam, que dão dinheiro para fazer circular o capital de giro. Banqueiro, em qualquer lugar do mundo, é poderoso; os políticos (os bons e os maus) são escolhidos por eles que financiam as campanhas políticas. Mas algo pode ser feito, poderíamos iniciar pelo mais simples: terminar de uma vez por todas com o financiamento privado de campanha. O interessante é que no Brasil o PT governa o país há quase 10 anos e o financiamento privado continua em pleno vapor. Por que será? Parece que os donos do poder (que estão sempre se alternando)não tem esse interesse.
Democracia é a senha para a barbárie (vide Afeganistão, Iraque, Líbia, etc) e violência física e psicológica (repressão aos estudantes da USP, denúncias vazias, mídia canalha, etc). Os tempos são duros e nada promissores.
armando do prado
Boa, Fell, voltaremos unidos a Idade da Pedra, dando cassetadas nas cabeças da mulheres. Viva a pré-história.
Maia, faz uma coisa, tira a expressão "capital financeiro" do teu comentário e substitui por "monarquia".
Isso prova que vc está fazendo um discurso do século 19, quando os reacionários de então também garantiam de pés juntos que aquela estrutura sólida das monarquias eram indestrutíveis e eternas.
Nós podemos querer reagir, podemos ser reacionários, mas isso não deterá a marcha do mundo, rapá.
Tenho um filho de 12 anos, acho séria a questão do otimismo e as perspectivas que devem ser cultivadas e estimo que o jogo social vai continuar a evoluir e aparar as arestas entre as pessoas e os povos.
Daqui a 100 anos seremos todos como a Noruega, capitalistas amparados por um estado socialista.
O capitalismo como conhecemos hoje é uma besta adoentada, ainda muito forte, cega, mas com muito cheiro de podre a escorrer de dentro dela.
As bestas existem para trabalhar para nós e não nós para elas.
Tóia,
Lembra deste texto, publicado na cartamaior.com.br de 13/9/2011?
Abç
André
Crise e reforma política
A raiz mais profunda da crise não está no sistema eleitoral. Sua causa fundante está na possibilidade que tem os agentes políticos, a partir de uma posição em relação ao Estado, de influenciar e decidir, sem qualquer controle social.
André Passos Cordeiro
Já nos primeiros momentos da crise política atual, muitos apontaram a construção de uma reforma política como saída para evitar novas crises. De fato ela é. Mas quais aspectos deveriam ser abrangidos por esta reforma?
Para responder esta pergunta, ao menos em parte, é preciso antes identificar a origem desta crise. No debate travado até aqui, alguns têm identificado a origem da crise nas distorções presentes no sistema eleitoral. Distorções quanto a regras de financiamento eleitoral, método para a escolha de parlamentares por lista aberta e ausência de regras de fidelidade partidária são, entre outros, elementos apontados como provocadores da crise. Partidos e candidatos são, nesta linha, pintados como reféns de uma dinâmica na qual as práticas hoje expostas pela crise seriam pré-condição para o sucesso eleitoral. Corrigidas estas falhas no sistema, teríamos representantes “blindados” a práticas moralmente reprováveis – em especial à corrupção - e fiéis a programas partidários.
Acreditar nisto equivale a crer no mito do “bom selvagem”. A política seria composta por boas pessoas corrompidas por um sistema distorcido, quando na verdade, não é feito nem só de boas pessoas e nem por um sistema totalmente distorcido.
Na verdade, a raiz mais profunda da crise não está no sistema eleitoral. A causa fundante desta crise está na possibilidade que tem os agentes políticos, a partir de uma posição em relação ao Estado, de influenciar e decidir, sem qualquer controle social, sobre uma imensa gama de temas e procedimentos. Temas e procedimentos que poderão atender ou não a algum interesse determinado. Cientes disto, muitos agentes vendem tal poder, nos subterrâneos do “mercado eleitoral”, para promover interesses que não teriam a menor chance de legitimação social a “luz do dia”. Mantida inalterada esta circunstância, tais agentes continuarão com esta prática qualquer que seja o sistema de competição eleitoral: com ou sem financiamento público, com ou sem fidelidade partidária, com lista aberta ou fechada de candidatos. A diferença entre a situação futura e a atual estará na dimensão do custo e do “prêmio”.
Por esta razão, alterar somente as regras eleitorais e partidárias não irá resolver o problema. Aliás, dependendo das regras construídas, uma reforma circunscrita a estes elementos poderá tornar estruturas partidárias e representantes eleitos ainda mais impermeáveis à pressão política da sociedade, em particular das camadas populares.
Para iniciar uma reforma que altere o atual cenário, é necessária a criação de mecanismos de controle social sobre as decisões tomadas pelos representantes eleitos. Neste sentido, um dos elementos centrais da reforma política deveria ser a criação de mecanismos de participação popular direta e sistemática na definição e fiscalização da aplicação dos recursos públicos. Um bom exemplo disto é o Orçamento Participativo. Também deveriam ser exigidos processos de debate e consulta pública para legislações e regulamentos que envolvam importantes interesses econômicos.
Uma reforma política que pretenda ter sucesso, além de reformar o sistema eleitoral e partidário, deverá incorporar elementos de fortalecimento orgânico, ampliação da profissionalização e de controle social do Estado brasileiro.
, economista, ex- secretário municipal do Gabinete de Planejamento de Porto Alegre.
Duas constatações aparentemente corretas da atualidade:
a) quem manda no ocidente são as instituições financeiras; e
b) o conceito ocidental de democracia está se tornando cada vez mais incompatível com o atual estágio do capitalismo, onde as instituições financeiras e/ou seus representante assumem o comando real de nações, em detrimento dos representantes do povo eleitos pelo voto.
André, lembro deste texto e posso dizer que foi seminal. Na época, eu discordei, mas o tempo (e os fatos) se encarregaram de te dar razão.
Abç.
CF
André, a data não é 2011. Só pode ser 2001.
CF
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