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terça-feira, 1 de abril de 2014

Exumar: lembrar do que estava esquecido



A recente exumação dos restos mortais do ex-presidente João Goulart, deposto por um golpe civil-militar no dia primeiro de abril de 1964, remete-nos a diversas considerações derivadas.

Estão envolvidos no caso, elementos de disputa de classe pela memória histórica, pelo reconhecimento da dignidade de um presidente que, morto no exílio, veio a ser enterrado no Brasil, quase como um clandestino, e sobretudo, o papel da chamada Comissão Nacional da Verdade, bem como o seu desempenho no cumprimento de seu propósito original.

Assim como o frio habita o gelo, a luta de classes habita a sociedade capitalista. A disputa de classes é uma condição intrínseca, essencial, do modo de produção capitalista. Essa disputa ocorre em todos os campos da vida social. A memória do passado é um campo de disputa. A representação que fazemos do passado é um espaço de intensa e renhida luta. Os símbolos e o imaginário social do presente estão impregnados daquilo que resulta deste embate por narrativas que expliquem os fatos à luz da razão e das conveniências sociais, culturais, políticas e econômicas. Com isso a desmemória e o esquecimento são pontos a favor do status quo, para não dizer do conservadorismo, reacionário e decadente, do qual o Brasil é tão exuberante, desde sempre.

Lutar contra o esquecimento foi o objetivo primordial da chamada Comissão da Verdade, do Brasil, a exemplo do que foi realizado no Uruguai, Argentina e Chile, com sucesso. Mas a nossa Comissão preferiu outro caminho. Até o momento não se sabe qual. O seu desempenho é confuso e diversionista. Ao invés de promover um debate nacional que encaminhe a anulação da Lei de Anistia, preferiu o espetáculo mórbido de exumar o presidente Jango, um fato de discutíveis resultados, a não ser o de recebê-lo com honras de estadista em Brasília, o que é elogiável.

Enquanto nos países do Cone Sul os militares foram julgados por seus crimes de lesa humanidade (o ditador Videla morreu recentemente na cadeia), no Brasil, os militares e policiais civis, agentes do Estado que cometeram graves crimes, continuam absolutamente impunes e muitos – como o coronel Brilhante Ustra – escrevem livros e fazem declarações atrevidas, justificando seus atos genocidas (como se eles tivessem gerado e obedecido a um Direito particular e provisório, portanto, não-Republicano, durante o tempo em que estiveram no poder).

A responsabilização desses agentes públicos deve ser feita com base no Código Penal, já que seus crimes não podem ser considerados políticos. O crime político é aquele praticado para atingir o Estado, e não pelo Estado, ou por funcionários públicos (militares e policiais) em nome do Estado.

A Universidade de Minnesota, dos EUA, realizou em 2008, um estudo onde analisou cem países que passaram pela transição entre governos autoritários e democráticos. Concluiu-se que nos países onde houve punição para os atos cometidos contra os direitos humanos o grau de violência policial é menor, ao contrário dos países onde isso não ocorreu, certamente pela sensação de impunidade. Não vamos muito longe, pessoas presas por ocasião das recentes manifestações de rua em Porto Alegre, foram interrogadas com questionamentos muito semelhantes aos métodos da repressão policial-militar da ditadura 1964/1985.

A todas essas já se vê que a exumação de Jango é um caso absolutamente isolado. Falta exumar a ditadura e resgatar o nosso direito republicano à memória. Enquanto isso não acontecer, nossa democracia estará incompleta.

Artigo de Cristóvão Feil, publicado originalmente no impresso “Jornalismo B”, em dezembro de 2013.

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