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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A maldição conservadora e a invenção do guasca



Antes de entrar no tema que quero comentar, chamo a atenção para o “Desfile Cívico-Militar do Vinte de Setembro” (conforme consta da programação dos seus organizadores, os dirigentes do MTG – Movimento Tradicionalista Gaúcho) que está se desenrolando hoje, precisamente 20 de setembro de 2011. 

Quero sublinhar a ênfase na expressão “cívico-militar” dado pelo MTG, em pleno século 21. Me explico. Ninguém desconhece a filiação positivista-comtiana dos republicanos brasileiros, na segunda metade do século 19. No Rio Grande do Sul, onde a República aconteceu depois de uma revolução cruenta que durou de 1893 a 1895, os positivistas foram mais radicais e, por isso, mais exitosos do que no resto do Brasil. Julio de Castilhos e os militantes do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) modificaram completamente o cenário político e social do estado mais meridional do País. No RS não houve a chamada troca de placa: sai a Monarquia dos Bragança, entra a República constitucional. Aqui, houve a mais completa e absoluta troca da elite no poder. Saem os velhos estancieiros pecuaristas da Campanha, entra uma composição de classes formada por uma pequena burguesia urbana, uma classe média rural, profissionais liberais e colonos de origem europeia da região serrana.

Os positivistas sulinos, fiéis aos ensinamentos dogmáticos de Auguste Comte, propugnavam – como o mestre – pela superação das fases pregressas da Humanidade. À fase militar-feudal deve seguir-se a fase industrial da Humanidade. Ou seja, à fase militar corresponderia a insurreição farroupilha de 1835-45 contra o Império do Brasil, agora – com o advento republicano – estávamos, pois, na hora de criar condições para o desenvolvimento e o progresso material que se daria por um processo intensivo de industrialização manufatureira. 
    
Vejam, pois, que os tradicionalistas do século 21 continuam com os olhos fixos num passado praticamente feudal, marcadamente militarista, embora não tenhamos experimentado, de forma hegemônica e total, esse modo de produção pré-capitalista no Brasil.  

Um dos formuladores intelectuais do que chamamos de ordem delirante do atraso – o pensamento tradicionalista da estância – foi Ramiro Frota Barcellos. Na obra “Rio Grande, tradição e cultura” (1915), o santiaguense é de uma clareza solar quanto aos propósitos enfermiços do tradicionalismo estancieiro: “O que agora se verifica, mercê do atual movimento tradicionalista, é a transposição simbólica dos remanescentes dos ‘grupos locais’, com suas estâncias e seus galpões para o coração das cidades. Transposição simbólica, mas que fará sobreviver, na mais singular aculturação de todos os tempos, o Rio Grande latifundiário e pecuarista”.

Qualquer semelhança com o enclave da bombacha e da fumaça que anualmente acampa, no mês de Setembro, no Parque da Harmonia, em plena área central de Porto Alegre, não é mera coincidência. A “mais singular aculturação de todos os tempos”, como premonitoriamente afirma Barcellos. Neste caso, “aculturação” é sinônimo de regressismo e estagnação.

É sobre isso que eu quero comentar brevemente.

Quando estudantes em São Paulo, Júlio de Castilhos e Assis Brasil chegaram a fundar um chamado “Clube 20 de Setembro”, que promoveu estudos – com algumas publicações - sobre o movimento farroupilha da primeira metade do século 19. Curiosamente, Castilhos abandonou as pesquisas sobre a guerra civil que varreu o Rio Grande por dez longos anos. Assis, em 1882, publicou a obra “História da República Rio-Grandense”. Por algum motivo, carente de melhores investigações, tanto os positivistas do PRR, quanto os liberais sulinos não foram muito enfáticos no culto farrapo. Tal fenômeno veio a ocorrer somente depois da Segunda Guerra, em Porto Alegre, no meio estudantil secundarista urbano do Colégio Estadual Julio de Castilhos. Daí se difundiu como rastilho de pólvora sob a forma dos onipresentes Centro de Tradição Gaúcho – CTG, que são clubes de convivência social onde se cultua o passado sob a forma fixa da mitologia farrapa, tendo como matriz formal a estética e o ethos do latifúndio da pecuária extensiva de exportação – subordinado à cadeia mercantil dos interesses hegemônicos ingleses na América do Sul. Quando os tradicionalistas se ufanam do pretensioso espírito autônomo e emancipado do chamado 'gaúcho' tout court, se referem ao Império dos Bragança, mas esquecem a dependência econômica e subordinação negocial estrita com os interesses ingleses, via portos de escoamento no Prata (Montevideo e Buenos Aires). 

[Das relevantes realizações modernizantes do castilhismo-borgismo foram a estatização e incremento do porto de Rio Grande, bem como a encampação das ferrovias controladas por capitais europeus, de forma a dotar o estado de infraestrutura e fomentar o desenvolvimento, sem depender do Rio ou do Prata.]   

A grande data a comemorar no Rio Grande do Sul, pelo lado do senso comum, é o 20 de Setembro, que marca o início da insurreição farroupilha (é um equívoco chamá-la de “revolução”, uma vez que os rebeldes foram derrotados pelo Império e não ocorreu nenhuma modificação política, social ou econômica na província sulina depois de 1º de março de 1845, na chamada Paz de Ponche Verde). No entanto, se houve revolução no sentido rigoroso e clássico do termo, esta ocorreu a partir da promulgação da Constituição Rio-Grandense, e da posse do governador (então, presidente do Estado) Julio de Castilhos, no dia 14 de julho de 1891. Meses depois, os conservadores e latifundiários alijados do poder, eternos aliados e sustentáculos da Monarquia, deram início à luta armada contra os jovens que governavam o Rio Grande (Castilhos tinha 30 anos quando assume a presidência do estado). A partir da revolução cruenta, se inicia um processo de grandes modificações e modernizações no RS. Em 1902, já com Borges de Medeiros no poder, depois da morte precoce de Castilhos, o estado passou a tributar com impostos progressivos as terras privadas, bem como reaver dos estancieiros as imensas glebas públicas apropriadas ilegalmente durante todo o século 19.
    
A hegemonia política do castilhismo-borgismo perdura até a década de 1930. Getúlio Vargas foi presidente do estado de 1928 a 1930, quando sai para o Catete, e já deixa um governo mais conciliador com os conservadores da Campanha.

É intrigante, pois, que a apropriação do imaginário social tenha se dado pelo lado dos conservadores, através do simbolismo inventado do 20 de Setembro, e não pelas forças burguesas, progressistas e renovadoras do Rio Grande do Sul, que seria pelo 14 de Julho.
                  
Eric Hobsbawn e Terence Ranger que estudaram o fenômeno da chamada “invenção das tradições” suspeitam que quando ocorrem mudanças sociais muito bruscas e profundas, produzindo novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis, inventam-se novas tradições e novos imaginários de identidade social e cultural. Para os dois autores britânicos, a teoria da modernização pode sim conceber que as mudanças operadas pela infraestrutura da sociedade demandem tradições inventadas no plano da superestrutura.

Neste sentido, a revolução burguesa positivista-castilhista de inspiração saint-simoniana, introdutora do Estado-Providência, mobilizou somente as instâncias da infraestrutura (base material e econômica), deixando uma vasta lacuna, um boqueirão ideológico, diríamos, na esfera da superestrutura. 

Assim, teria restado um formidável vácuo em distintos setores da vida social e no espírito dos indivíduos, como nas artes, no pensamento político, no Direito, na identidade, nas subjetividades individuais e de grupos, na cultura e no imaginário como um todo. O homem é, antes de tudo, um animal simbólico, e este domínio da razão e da cultura foi deixado vago, motivado, talvez, pelas duras urgências da vida real, mas também – suspeito eu – pelo próprio autoritarismo do poder estendido do castilhismo-borgismo.

O tradicionalismo seria, assim, um desagravo mítico-ideológico dos derrotados de 1893/95, os mesmos derrotados de Ponche Verde. Uma vingança de classe – a do latifúndio subalterno e associado – contra a modernização burguesa do positivismo pampeiro, seria isso? Uma maldição contra o futuro do Rio Grande? “Vocês estarão condenados a viver no passado, em meio à fumaça e o cheiro de esterco, festejando derrotas, e considerando heróico, cavalgando durezas e incomodidades, e considerando genuíno, fruindo uma arte primária e mambembe, e considerando autêntico, cultuando velhos ressentimentos e considerando lúcido, ignorando o rico mosaico cultural da província e considerando o tradicionalismo de matriz latifundiária como a síntese de tudo. Vocês são os gaúchos, velhos vagabundos redimidos, são os heróis de um passado que nunca existiu” – foi a sentença de fogo dos que trouxeram o tradicionalismo como vanguarda do atraso no pensamento guasca.              

18 comentários:

Anônimo disse...

Um primor! O parágrafo final, "matou a pau", usando uma expressão emocionalmente incorreta. Valeu Feil!

Ary

Anônimo disse...

Até eu que volta e meia venho ler este blog só para implicar tiro o chapéu. Parabens pela análise. Hoje ainda, escutando o hino Riograndense fiquei pensando que nem todas as nossas façanhas devem servir de modelo a toda a terra, principalmente a façanha de desarmar os lançeiros negros companheiros de batalhas para serem trucidados pelos imperiais. Onde fica a lealdade e o valor palavra empenhada?

Claudia Cardoso disse...

Será repassado aos pares, podes ter certeza disso! :-)


Muito bom!!!!

Anônimo disse...

Muito bom. Mas,o que se pode auferir de tudo isso aí é que um foi complemento do outro,afinal,se ambos eram republicanos... Apenas que o segundo conseguiu ser republicano de fato,o que o outro não teve lá muito sucesso. Mas,vou te dizer uma coisa: A esquerda gaúcha malha em ferro frio falando contra o 20 de setembro. Isso malha mesmo,afinal,ninguém tem culpa se os castilhistas não souberam propagar seus feitos. O que aconteceu aí,pelo que se vê,se fosse trazida pros tempos atuais,seria o desmembramento do PT,que se viu depois da vitória do Lula,gerando o PSol. Talvez de uma maneira menos direta,já que o tempo que separa um feito de outro não é o mesmo e nem eles foram exatamente do mesmo "partido"( que nem deviam existir na época. Mas,o caso é que a data que se eternizou foi o 20 de setembro e a luta foi a farrapa,e agora?

Anônimo disse...

Brilhante!

Adir disse...

Sapateando na Bosta do 20 de Setembro - http://goo.gl/rwvR5

Diego Chevarria disse...

Muito bom!!! Parabéns pela análise!!! Com o espírito de revolução que sempre se espera de quem é o verdadeiro gauche!!!

Paulo Augusto disse...

Visceral!

Eduardo Martinez disse...

Horário gauche, Diário Gauche, anuário gauche, centenário gauche. Histórico post(eiro), Cristóvão.

Quem cultua pedras nos rins da história não sabe a dor de ser rio, muito menos grande e do sul.

Conta do Google disse...

Peço licença caro Cristóvão, sou um dos que cheira a barro(bosta) de mangueira a galpão e a creolina, com muito orgulho. Respeitando tua talvez matiz urbana e consequente concepção e visão, e a minha rural, gostaria apenas de dizer que a cultura é uma, se não única, forma de dar identidade agregadora a um povo ainda mais quando esse povo é formado por várias etnias, concordo no tocante que a história deva ser bem contada sem falsidades ideológicas, inclusos os erros históricos, mas perder também é gesto de humildade que tem muita valia e ensinamentos. A história e a sociologia sabem que uma comunidade, assim como cada ser humano no seu instinto animal, dependem da firmeza e valorização de sua auto estima para pelear, tanto para garantir a continuidade dos seus gens, quanto pela própria sobrevivência. Encero citando Jose Marti "nenhum povo é dono de seu destino se antes não é dono da sua cultura".
Abraços.
Decio Machado Monteiro

Anônimo disse...

Muito bom e, mutatis mutandis, veste e cabe como uma luva à pseuda revolução paulista de 1932, mentira engedraada pela elite separatista e predadora que entende os nordestinos e demais como "gente diferenciada". São os participantes do atual "Cansei", signifique isso o que significar.
armando do prado

jogos da memoria disse...

Como sempre, uma defesa brilhante do castilhismo e do PRR. Tudo muito certo,muito bem. Diria que é preciso dar um passo além, aproveitando-se o mito e o ritual criado. É uma energia, na falta de melhor palavra, que pode muito bem conviver, unindo a análise e o que não está dito, está nas entrelinhas, pelo Decio. Mas isto não é uma análise acadêmica de minha parte, só acredito que é preciso ir adiante. O que colocar no lugar é a questão. Será tão intrigante assim que a apropriação do imaginário social tenha se dado pelo lado dos conservadores, ou o "castilhismo-borgismo" nunca conseguiu colocar no lugar, até hoje, algo tão culturamente unificador como essa construção dos "perdedores" ?

Omar disse...

Excelente, Mestre Cristóvão. Se eu tivesse um chapéu o tiraria.

Anônimo disse...

parabens.

Anônimo disse...

Muito bacana o artigo. Acho interessante também a forma como essa elite ruralista se apropriou de uma figura que não pertencia a ela, o gaúcho, antes marginal, calaveira e velhaco, agora um ícone, receptáculo dos valores mais altos do homem da província.

Anônimo disse...

Sou materialista histórico, dialético etc e nunca vi uma alnálise tao sectária... uma confusao tao grande entre história e cultura e política e economia... de forma geral a interpretacao está certa, mas com foco limitado! a visao é escrava das teorias estritas dos colonizadores da mentalidade subordinada... os estancieiros farrapos foram apenas mais uma manifestacaodos tipos humanos que por aqui viviam... o pampa inspira liberdade e autonomia!

Anônimo disse...

Olha, isso de que "O pampa inspira liberdade e autonomia.", é meio ideológico para quem se diz materialista histórico, não é não? E justamente uma ideologia decorrente da infraestrutura feudalista, e aqui justamente a pertinência do artigo do Cristóvão: curiosamente uma ideia, ou ideologia, que continua se desenvolvendo a despeito da inexistência da infraestrutura que a inspira, ou seja, se desenvolve apenas a partir do imaginário, de forma romanceada, e assim como Munchausen, puxando-se a si mesma pelos cabelos, para alçar-se acima e para além da infraestrutura posta, em síntese, uma ideologia que cria seus próprios signos, alguns bem questionáveis quanto à correlação histórica.

jo disse...

O que um churrasco e um chimarrão e um trago fazem milhares aumentarem a autoestima...

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