Arrisco dizer que está se formando uma Escola do Nada no cinema da atualidade. “Cópia Fiel”, do incensado diretor iraniano Abbas Kiarostami, é o terceiro filme que vejo na sala de cinema que, pretensioso, não consegue parar de pé. Os outros dois, comentei-os aqui, são “A árvore da vida”, do diretor Terrence Malick, e “Melancolia”, do autodeclarado “admirador de Hitler”, Lars von Trier (informe-se que o “von” foi adotado pelo cara, o que lhe confere uma autoatribuída origem nobiliárquica). Isso é para vocês saberem – de plano – com quem estão lidando.
As qualidades destes três filmes (metidos a) ‘cabeça’ ou ficaram em casa, ou foram passear. Na tela, só deixam um rastro de tédio, indigência intelectual, diálogos morféticos, narrativa nenhuma e dez oceanos de falsa erudição.
Kiarostami naufraga seu talento e inteligência nos recifes mortais da própria vaidade. Quem sai olímpica e bela do desastre do iraniano é Juliette Binoche, uma orquestra inteira de razões e sensibilidades executando composições divinas em meio ao titânico afundamento kiarostâmico. Por causa do enorme talento da Binoche, vi ‘Cópia Fiel’ como um filme protofeminista. Ela sofre e reage tanto ao filho adolescente como ao escritor/marido, vivido pelo inglês William Shimell. Sua luta é fazê-los menos egoístas e mais homens, mas só consegue cinismo (do filho) e indiferença (do filósofo/marido). Seu rosto expressivo impressiona: se ilumina ou escurece como um mecanismo controlável, faz todas as gradações da alma ao pronunciar uma única frase de diálogos improváveis e inseguros.
Duvido que os distintos e mercuriais estados de espírito da personagem Elle, a antiquarista, ao longo do filme, estejam pré-determinados pelo roteiro. Binoche não só se salva, mas acentua e marca seu talento em meio à ruindade do filme. Por esse motivo conquistou o prêmio de melhor atriz do festival de Cannes de 2010.
Duvido que os distintos e mercuriais estados de espírito da personagem Elle, a antiquarista, ao longo do filme, estejam pré-determinados pelo roteiro. Binoche não só se salva, mas acentua e marca seu talento em meio à ruindade do filme. Por esse motivo conquistou o prêmio de melhor atriz do festival de Cannes de 2010.
Duas horas dos melhores momentos dos filmes do trio Malick-Trier-Kiarostami não valem dez minutos de qualquer trecho da obra de Bergman. A vida pessoal de Lars von Trier, suas momices, afirmações impressionistas (e espetaculosas) sobre o nazismo me tocam muito mais do que o seu ‘Melancolia’.
Em ‘Cópia Fiel’ a intenção não confere com o resultado logrado por Kiarostami. O filme se encaminha para o feminino, mas se perde nos diálogos confusos e over-cabeça que acabam derivando para o seu contrário, um filme perdido e vazio. No início, a antiquarista representada por Binoche vive em um porão escuro, guarnecido por vasos, esculturas antigas e um gato ao qual resta dedicar afeto. O filósofo entra e logo pede para sair daquele ambiente lúgubre e depressivo. O mote sugere tudo, mas o filme só desanda e abatuma – mais uma vez. Mais adiante, acontece o inconcebível para um diretor reconhecido como Abbas Kiarostami, o personagem filósofo dá uma comovente aula – certamente inspirado na Wikipédia – sobre a velha quase caquética “estratégia de deslocamento” na arte. Para tanto, ele usa os ciprestes que guarnecem a pequena estrada no interior da Toscana (Itália) por onde passeiam de carro. Ora, isso foi feito em 1917 por Marcel Duchamp com os seus ‘ready made’: urinóis e rodas de bicicleta apresentados como obras de arte e reconhecidos como tal.
Ao associar seu filme à transgressão da arte praticada por um Duchamp, por exemplo, Kiarostami está dizendo que quer fazer o mesmo no cinema, que ele acha que o cinema está em crise de narrativa, e que sob a capa fria e dura da nossa atualidade hipertecnológica se forma uma nova sensibilidade artística que por sua vez exige outras representações simbólicas, blablablablá... Muito bem, me parece razoável e crível tudo isso, entretanto, quando se trata de explorar essa especulação intelectual pertinente ele, Kiarostami, bem como Malick e Trier, em outros registros motivacionais, se perdem dentro da própria cabeça. Impotentes, inseguros e perdidos no over-conceitual do cavalo-de-pau cerebral que quiseram dar, acabam esborrachados no chão pedregoso da incomunicabilidade. Os três carinhas esqueceram várias coisas, tais como:
a) não há autor – em qualquer linguagem artística – que produza para si;
b) a obra de arte é uma expressão individual, mas sobretudo social;
c) a expressão social da arte é realizada através de um pacto pela comunicação, dentro de um espaço de cultura.
Quem esquece disso, faz requerimento para ser incompreendido, e registra no cartório das faculdades vaidosas. Eles não se abalam muito com a enunciada “incompressão”, porque supõe que esta lhes dará o status de terem feito obra-seminal-cabeça, filmes intelectuais que revolucionam a linguagem do cinema, que não são caretas, longe disso, que são portadores de futuro e os reis do mocotó pós-moderninho.
Com isso, o trio parada dura se candidata – involuntariamente – a ficar conhecido como artistas/arteiros oficiais da globalização financeira, cargos vagos, mesmo depois de três décadas de ultraliberalismo que salgou o chão da criatividade e o céu do frescor artístico. Assim, menos que criativos, o trio passa a fazer uma arte sintomática, qual seja, um sintoma agudo do nada cultural e da irrelevância artística deixada pelas pegadas do ultraliberalismo de aparências.
No futuro, quando houver o exame crítico desta fase e seus autores, se dirá: “Eles queriam dizer algo sobre o seu tempo, mas foram impedidos pelo eco do vazio incontrolável. Queriam cozinhar um mocotó, mas serviram apenas uma sopa aguada e fria”.
11 comentários:
Desculpe, Feil, mas você não entendeu nada.
Cópia Fiel é, desde o título, um filme sobre o Cinema. (me admira que você, leitor de Walter Benjamin, não tenha notado isso).
E sobre o cinema sem sequer falar as palavras "filme" e "cinema".
A cada cena, Kiarostami mostra que domina a gramática de diversos autores que o precederam. Em especial Roberto Rosselini, Yasushiro Ozu e Alain Resnais.
É assim um filme para cinéfilos, e que se aproxima muito da idéia de cinema-puro: um cinema cuja Estória (o modo de a câmera contar a fabula) fica tão robusta que a fábula (a narrativa sendo contada) se esvazia de importância, e mesmo desaparece. (quem mais se aproximou disso antes foi um dos pais criadores do cinema, Walt Disney, ao filmar Fantasia. Mas, como Dr. Walter da Silveira dizia, ele claudicou por excesso: Fantasia vale como exercício, mas é ruim).
É filme para quem tem no cinema uma religião. Um filme, digamos, teológico. E nisso, excelente!
Não, Portela, nestes termos não entendi nada mesmo. Confesso.
CF
Religião do cinema? É isso que li? Funda uma igreja então Lucas.
sinal, Feil, que talvez você não domine conceitos elementares do cinema: fábula X estória, cinema-puro X impuro, etc.
Talvez porque eu nasci na terra que, mais do que de Glauber, é de Dr. Walter da Silveira - modestamente, um dos fundadores da teoria crítica do cinema no mundo! Sugiro que procure O Eterno & O Efemero, que é sua obra completa publicada recentemente em 4 volumes. Há nela inclusive cartas pessoais para políticos (ele foi do PTB de Vargas), outros intelectuais (inclusive André Bazin), etc.
Gradisca, a idéia de que "o Cinema não é uma arte nem uma ciência, mas uma Religião" é de Godard, no História(s) Do Cinema, vol 4. Ele diz isso a partir das obras de Robert Bresson e Carl Theodor Dreyer. Em geral, eu não gosto de Godard, que reputo um cineasta pior do que ruim: inasssístivel! Mas como teórico, ele é insuperável - e é como teórico que ele lança esta definição. Dentro da qual o cinéfilo não é um crente, mas um teólogo: isto é, alguem que sabe do segredo ilusorio daquela crença, e o persegue obstinadamente.
Poucos brasileiros nasceram na Bahia, por isso o Brasil é imperfeito, Lucas.
Sou generalista nesse sentido. Arquitetura, design, música, política, pintura, cinema... que precisam de vastos textos, defesas, argumentos para se sustentar... são na verdade muito ruins.
Mas esse portella não consegue falar duas frases sem girar em torno da Bahia. Ele deveria assumir a sucursal d'O Bairrista em Salvador. Êta umbigo! Mas ele vai dizer que não é só na Bahia que tem vida inteligente, em Pernambuco também (isso porque alguns baianos foram pra lá, claro...).
Gostei da sua crítica, Cristóvão. Tenho sentido o mesmo em relação a muitos filmes recentes e me perguntado "será que o problema sou eu?". Independentemente de qualquer coisa, "Cópia Fiel" é pra lá de chato.
Plínio Paulos
Cristóvão, você não está sozinho. O crítico do Guardian também não gostou do filme:
"It is a film that is pregnant with ideas, and for aspiring to a cinema of ideas Kiarostami is to be thanked and admired. But the simple human inter-relation between the two characters is never in the smallest way convincing, and there is a translated, inert feel to the dialogue."
Tradução: "um filme cheio de ideias e, por aspirar a um cinema de ideias, Kiarostami deve ser agradecido por isso e admirado. Mas a simples interrelação humana entre os dois personagens nunca é, de modo algum, convincente e há uma sensação inerte de tradução no diálogo."
Plínio Paulos
Meio atrasada, quero me solidarizar com o baiano.
Infelizmente, nós, os gauchos,
nos achamos muito "tudo". Esquecemos que o Brasil não começou aqui. Com toda a certeza, culturalmente, Bahia e Pernambuco nos dão um laço.
Bom, pessoal! Como troquei de “nacionalidade” – de baiana virei capixaba – não vou entrar na discussão de quem é o melhor, mas já disseram que ser baiano é um “estado de espírito”.
Não sou crítica de cinema nem cinéfila, mas gosto de filme, assim como gosto – em maior grau – de livros.
Sobre Kiarostami, vi DEZ, GOSTO DE CEREJA... Mas não quero dizer do que vi ou do que não vi já que cinema é VER. ÁRVORE DA VIDA, na verdade, não precisava mesmo de diálogo nenhum porque pelas imagens apresentadas e pela relação do pai (papel de Brad Pitt), já se entende perfeitamente de que pai e de que filhos – no plural – está se falando...
Sobre o MELANCOLIA do Trier foi muito genial a forma que ele encontrou de falar sobre o catastrófico final de mundo sem mostrar a catástrofe em si, como soe acontecer em muitos filmes que rolam por aí, cheios de heróis salvadores de pátria nenhuma. Ele metaforiza sobre a dor e a impotência de cada um de nós quando a melancolia se instala e se tem que relaxar sem gozar (o que é muito pior). É preciso dar um salto pra entender a ideia do diretor até quando ele fala sobre Hittler; o que ele fala dos psicanalistas que não admitem, ou escondem, que a presença do MELANCOLIA é, de fato, o fim do mundo. Aí entra a grandiosa interpretação de Kirsten Dunst, no papel de Justine, ao traduzir o sentimento do Trier e de metade do mundo, sem usar muitas palavras. Perfeito e perfeita. Sugiro aos comentadores desta postagem de Feil que leiam a fala de uma leitora para Justine/Trier em www.neuzamariakerner.blogspot.com
A obra de arte é realmente uma expressão individual e também social, mas muito na medida do que produz no “leitor”, entidade indispensável para apresentar a multiplicidade dos sentires e interpretações (aliás, a estética da recepção já levanta essa lebre). Isso é tão sério que posso confessar, sem pejo, que não gosto de Miró nem de Duchamp.
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