Suportar a verdade
Nos próximos dias, o governo deve conseguir aprovar, no Congresso, seu projeto para a constituição de uma Comissão da Verdade. O que deveria ser motivo de comemoração para aqueles realmente preocupados com o legado da ditadura militar e com os crimes contra a humanidade cometidos neste período será, no entanto, razão para profundo sentimento de vergonha.
Pressionado pela Corte Interamericana de Justiça, que denunciou a situação aberrante do Brasil quanto à elucidação e punição dos crimes de tortura, sequestro, assassinato, estupro e ocultação de cadáveres perpetrados pelo Estado ilegal que vigorou durante a ditadura militar, o governo brasileiro precisava mostrar que fizera algo.
No caso, "algo" significa uma Comissão da Verdade aprovada a toque de caixa, sem autonomia orçamentária, sem poder de julgar, com apenas sete membros que devem trabalhar por dois anos, sendo que comissões similares chegam a ter 200 pessoas.
Tal comissão terá representantes dos militares, ou seja, daqueles que serão investigados. Como se isso não bastasse, a fim de tirar o foco e não melindrar os que se locupletaram com a ditadura e que ainda dão o ar de sua graça na política nacional, ela investigará também crimes que porventura teriam ocorrido no período 1946-64. Algo mais próximo de uma piada de mau gosto.
Um país que, na contramão do resto do mundo, tende a compreender exigências amplas de justiça como "revanchismo" não tem o direito de se indignar com a impunidade que se dissemina em vários setores da vida nacional.
Aqueles que preferem nada saber sobre os crimes do passado ainda estão intelectualmente associados ao espírito do que procuram esquecer.
O povo brasileiro tem o direito de saber, por exemplo, que os aparelhos de tortura e assassinato foram pagos com dinheiro de empresas privadas, empreiteiras e multinacionais que hoje gastam fortunas em publicidade para falar de ética. Ele tem o direito de saber quem pagou e quanto.
Esta é, sem dúvida, a parte mais obscura da ditadura militar. Ou seja, espera-se de uma Comissão da Verdade que ela exponha, além dos crimes citados, o vínculo incestuoso entre militares e empresariado.
Vínculo este que ajuda a explicar o fato da ditadura militar ter sido um dos momentos de alta corrupção na história brasileira (basta lembrar casos como Capemi, Coroa Brastel, Lutfalla, Baumgarten, Tucuruí, Banco Econômico, Transamazônica, ponte Rio-Niterói, relatório Saraiva acusando de corrupção Delfim Netto, entre tantos outros).
Está na hora de perguntar [...]: Quanta verdade o Brasil suporta?
Artigo de Vladimir Pinheiro Safatle, professor livre docente do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), especialista em epistemologia (teoria do conhecimento) e filosofia da música. Publicado na Folha edição da última terça-feira 20/9.
3 comentários:
O quê esperar de uma Comissão da Verdade negociada por governistas, por tucanos e por demos (o DEM é a ex-Arena, aquele partido do regime militar) em banheiros? Só pode dar merda. Uma meia verdade, provavelmente. Fiz este mesmo comentário em meu blogue: http://mjdelfino.blogspot.com/2011/09/parlamentares-usaram-banheiros-na.html
ATENÇAO! URGENTE !! OFICIAL DE JUSTIUÇA NÃO CONSEGUE LOCALIZAR A EX-GOVERNADORA YEDA !! EM LUGAR INCERTO E NÂO SABIDO !!!
Magnífico o artigo do professor Safatle.
Contudo, creio que ele comete uma imprecisão: escreve quatro vezes a expressão "ditadura militar" para descrever o regime que vigorou de 1964 a 1985 no Brasil. Para mim, o termo mais preciso para designar tal período é o que tu usas, Feil: "ditadura civil-militar".
O próprio Safatle dá força a esta última expressão quando escreve que "os aparelhos de tortura e assassinato foram pagos com dinheiro de empresas privadas, empreiteiras e multinacionais que hoje gastam fortunas em publicidade para falar de ética" e quando cita "o vínculo incestuoso entre militares e empresariado".
Ademais, a expressão "ditadura militar", acredito, ajuda a esconder o caráter de classe do regime.
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