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segunda-feira, 26 de setembro de 2011
Por que o RS optou pelo pior
O Rio Grande do Sul porta uma riqueza cultural única no Brasil, que resulta da contribuição de múltiplas nacionalidades e etnias - algumas autóctones, como as diversas nações etnolinguísticas que tivemos e temos (sem jamais esquecer o holocausto do bravo povo Charrua, que preferiu o sacrifício da vida a se deixar evangelizar pelos jesuítas); outras, exóticas, como europeus, asiáticos e africanos. Temos comunidades representativas de todos os continentes, que aqui se expressam, se miscigenam, e de alguma maneira contribuem para o nosso vasto painel cultural chamado Rio Grande do Sul.
Todavia, somos conhecidos como "gaúchos". Ou melhor, o pensamento político hegemônico achou cômodo e funcional adequar um velho vocábulo marginal e desprestigiado - o gaúcho - para identificar de forma grosseira e imperfeita o tipo humano mais meridional do Brasil. Logo, mesmo a muque, somos gaúchos. Um gentílico reciclado e remodelado para representar o povo sulino, portanto, um locativo arbitrário e insuficiente - reducionista e ficcional.
O significado das palavras é histórico, porque muda conforme as ondulações do tempo e das vontades. Camões (ao lado) dizia que mudam-se os tempos e mudam-se as vontades. Gaúcho já foi o tipo marginal, uma espécie de andarilho em busca de um porto seguro, e que desconhecia as normas sociais estabelecidas. É, inclusive, uma expressão multinacional, comum à região platino-pampeana. "Gauchos" (pronuncia-se gáu-tchos) são os uruguaios e grande parte dos argentinos.
Assim, se a imprecisão avulta, cresce também a necessidade de emprestar mais atributos identitários ao gentílico, a fim de definir os contornos de uma personalidade singular e exclusiva.
Que tal trazer do passado recortes plásticos para dar-lhe espessura e densidade histórica? A guerra civil de 1835-1845 contra o Império da família Bragança pode ser uma boa ideia. Tem muitos ingredientes épicos, tintas republicanas, espírito indômito, traços libertários, uma subjetividade não contaminada pela cultura etnocêntrica, etcetera, que podem formar um nexo neste constructo mítico que se está moldando meio às cegas.
Como em toda mitologia, foram sendo costurados elementos portadores de significado e que representam a realidade. É a bricolagem de Claude Lévi-Strauss. Uma vasta colcha de retalhos do real, improvisados de forma a combinar um todo que guarda coerência com o passado, mesmo que parte deles seja ficção, parte metalinguagem, parte historiografia, parte contingência, parte realidade transfigurada, parte ideologia, parte má consciência, parte fetichismo, parte gabolice, e por aí vai. O gaúcho, portanto, é uma obra em aberto, e por isso, em disputa. Uma obra que flutua, uma "ideia feita" (Flaubert) e refeita constantemente pelos seus sustentadores (ou mesmo adversários, por que não?).
Brincando um pouco, é possível dizer que o gaúcho (à moda de Michel Foucault no prefácio de As palavras e as coisas, onde cita Jorge Luis Borges) está catalogado como “uma certa enciclopédia chinesa onde está escrito que os animais [os gaúchos] se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) etcetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas”.
Quer dizer, cabe qualquer disparate para identificar esse "tipo ideal" (Weber) do bloco no poder sul-rio-grandense.
Semanas atrás, uma empresa midiática familial sulina, de grande influência no poder e no senso comum local, achou por bem em consultar os seus leitores/consumidores sobre quais seriam os principais personagens históricos do Estado, como se o senso comum dominasse de forma segura esse universo historiográfico e a partir disso pudesse fazer a classificação do panteão pretendido pela empresa de entretenimento. Por óbvio, havia uma cartela de nomes passíveis de representarem a farsa midiática, quase todos de ficção, alguns de ficção romanesca mesmo, como uma certa namorada do mercenário italiano Giuseppe Garibaldi, que hoje está entronizada como figura fundante da nossa "pequena pátria" (Comte).
Já se vê, pois, que há permissão para que qualquer indivíduo ou grupo incida nessa bricolagem mítica que é o constructo do gaúcho. É evidente que o pensamento hegemônico tira vantagem nessa disputa, afinal, detém a quase absoluta totalidade das mídias conhecidas, o Parlamento, o Executivo, o Judiciário, as Universidades, a publicidade, e uma formidável capilaridade no meio social, através da escola formal, clubes, associações, igrejas, entidades patronais, e mesmo sindicatos de empregados, etc.
Mas tem um componente neurótico nessa opção pelo tradicionalismo. Sim, porque entre dois tradicionalismos, escolheu-se o mais rústico e rasteiro. A que tradicionalismo nos referimos? Ora, o tradicionalismo vencedor é aquele filiado à corrente farroupilha de Bento Gonçalves da Silva, a tradição hegemonizada, portanto subalterna, é a de Julio Prates de Castilhos (ao lado), o responsável por um movimento político burguês que ainda no século 19 projetou o Rio Grande do Sul no século 20.
Hoje, predomina um ethos que corresponde à tradição imposta por um antigo ladrão de equínos e bovinos, Bento Gonçalves da Silva. São esses traços psicossociais que estão no poder no Estado, agora. A tradição representada pelo burguês modernizador, revolucionário (no estrito senso do vocábulo), austero e incorruptível, que foi Castilhos, está subordinada ao pragmatismo mais rebaixado e deletério. Informe-se que Julio de Castilhos preferiu as dificuldades materiais e contingentes do que advogar para sobreviver, depois que foi alijado do poder. Alegava que não poderia - moralmente - sequer peticionar a um magistrado que fora nomeado por ele quando chefe do Executivo estadual.
Esse modelo político-moral está arquivado no Rio Grande, em favor de um padrão inspirado no abigeato e na apropriação indébita do público e do privado.
Se o Rio Grande chegou primeiro ao século 20 (antes mesmo do resto do País), hoje, sai por último do mesmo século. O Brasil, aos trancos e barrancos, e de forma parcial, já chegou ao século 21, mas o RS se arrasta e se enxovalha no pântano a que foi conduzido pela hipertrofia do pragmatismo maragato, cuja matriz político-ideológica foi forjada durante o século 19, depois da guerra civil de 1835, e se estendeu até 1891, no dia 14 de julho quando é proclamada a Constituição castilhista que induz a modernização burguesa e a promoção geral e complexa da província fronteiriça sulina.
O castilhismo-borgismo promoveu uma autêntica revolução burguesa no Estado. Algo que o próprio Brasil experimentaria somente depois de 1930, com a chegada de Getúlio Vargas (ao lado) ao poder. Se nós tivemos uma revolução burguesa do tipo clássica, cruenta, que modificou radicalmente o poder regional, modernizando-o e aportando valores republicanos, ainda que não-democráticos, o Brasil não a teve. A modernização do País e a institucionalização do Estado, bem como o processo de industrialização, foram conquistas, não da burguesia, mas da iniciativa do próprio Vargas - forjado e projetado no sistema castilhista sul-rio-grandense.
Assim, festejamos o 20 de Setembro, por um capricho rançoso dos perdedores de 1893 (e que estiveram no poder durante toda a segunda metade do século 19 e só souberam se apropriar de terras devolutas do Estado monárquico, especialmente na região da Campanha).
Por que não festejamos o 14 de Julho de 1891? Justo a data da proclamação da Constituição republicana. Esta data é o dia fundante da verdadeira república rio-grandense. Por que festejamos a outra, a república farrapa, que admitia o escravagismo e tolerava todas as religiões, desde que fosse a católica romana? Uma falsa república fundada por falsos líderes, os mesmos que assinam o vergonhoso pacto de Ponche Verde com o Império dos Bragança, e de quebra recebem uma polpuda "indenização". É caso único no mundo, o vencido receber indenização do vencedor. A rigor, o Império comprou a "rebeldia" dos farroupilhas, e estes se venderam pelo vil metal.
Artigo de Cristóvão Feil publicado neste blog DG em 20 de setembro de 2009. Estamos republicando-o a pedido de leitores.
Foto do alto: no dia 2 de janeiro de 2009, um anônimo montou em pelo sobre o belo monumento positivista que homenageia Júlio Prates de Castilhos, na Praça da Matriz, centro de Porto Alegre. O sujeito, por acaso nascido em Bagé (RS) principal cidadela maragata na revolução de 1893, foi preso e não soube explicar o gesto e a intenção. Foto de Fernando Gomes/ZH.
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25 comentários:
Pelamordedeus, alguém me diga onde encontro a fonte original desta incrível foto de hoje, 4/09/10, pois quero tê-la guardada comigo.
Com todo o respeito aos post, as fotos são a coisa mais bacana desse blog. Parabéns de novo e abraço.
Sim, os textos - e este serve como exemplo geral, pois revela apenas mais um comovente esforço do articulista - são bem ruinzinhos. Já as fotos são lindas.
Falstaff
O DNA é o mesmo, ladrão de cavalos, saqueador, é o mesmo DNA.
Mas como o Castilhismo afunda e some ? Como um poder vencedor se dilui?
Porque a rua Bento Gonçalves é maior e parece mais importante que a rua Júlio de Castilhos ?
Pois eu fico maravilhada com as aulas que o articulista nos proporciona.
A critica parte de quem não é capaz de refutar os argumentos aqui expostos com a mesma sabedoria. Poderia, por favor, me convencer em que parte o texto "é bem ruinzinho"?
Caro Feil, parabéns pelo texto. Você conhece alguma cidade do universo que tenha monumento e avenida em homenagem a quem a sitiou por anos e foi derrotado pelos seus defensores ( esquecidos, por sinal) ?
Sugiro ao articulista, que se valha de vocabulário mais coloquial e de raciocínios mais pacóvios, para que possa ser melhor compreendido pelos leitores da RBS.
Mais um excelente texto do Feil. Parabéns.
Calculo que ainda restam mais uma ou, no máximo, duas gerações.
Excelente texto, Feil! A foto também é notável, mas apenas ornamenta o texto. Quanto ao "woodstock guasca", ainda bem que terminou! Moro perto do local, mas evito passar por perto dessa manifestação gaudéria decadente - um bando de desocupados que invade o Parque da Harmonia para tocar gaita, comer churrasco e encher o rabo de cachaça durante semanas. O resultado não poderia ser diferente - um parque destruído e alguns cadáveres (de bravos farrapos mortos a facadas)...
Engana-se quem pensa que só quem é de direita e leitor da máfia midiática da RBS pode detestar os textos mal acabados de Cristóvão Fail. Eu não sou e acho-o um embuste.
Falstaff
caro gauche
eu que não sou do sul e pouco conheço dessa história sedutora, agradeço, o texto é uma boa isca para estudar e compreender melhor sua turma (não sei se chegarei a compreender o futebol que se joga por aí abaixo, incluída a província de buenos aires). No mais ladrão de gado e de cavalo, torna as coisas mais claras, mas não é ruim bovinizar um texto, vez em quando. Quanto aos monumentos, o brasil homenageia em ruas avenidas e até viadutos (!), ditadores, ladrões e houve caso de até professor estrangeiro de tortura, quanto mais!
Feil, por gentileza republique a lista de livros que falam sobre o assunto! Não consegui encontrá-la nos textos originais de 2007.
Obrigado
Vinicius
vtumelero@yahoo.com.br
Caro Anônimo Falstaff,
O sobrenome é Feil, com e.
Eu, por exemplo, não costumo visitar sites que detesto.
Sei lá.
Acho que esse negócio de masoquismo está meio fora de moda.
Falstaff é sinônimo de vingança shakespereana.
Feil, vc tem algum desafeto? Teu Falstaff tá pegando no pé.
Prezado Vinícius,
A bibliografia é grande.
Por exemplo: A biografia do Julio de Castilhos escrito pelo Sergio da Costa Franco. As memórias do João Neves da Fontoura, em dois volumes. O regionalismo gaúcho, de Joseph Love. Os ensaios do aplicado estudioso Luiz Roberto Pecoits Targa (na internet). Trabalhos da professora Sandra Pesavento, do prof. Moacir Flores e do prof. Mario Maestri. Um ensaio de Alfredo Bosi (Arqueologia do Estado-Providência) que está na obra Dialética da Colonização. A obra Fronteira Rebelde de John Chasteen. Os donos do poder, de Raymundo Faoro. El gaucho, do uruguayo Fernando Assunção. Capitalismo e Escravidão no Brasil meridional, de Fernando Henrique Cardoso (uma visão 'paulista' do RS). "Vargas, o capitalismo em construção", de Pedro Cesar Dutra Fonseca. Da professora Céli Regina Pinto, "Positivismo: um projeto político alternativo".
É preciso conhecer também as obras sobre Getúlio Vargas, com vasta literatura. Etcetera. Etcetera.
Abç.
CF
Ao Falstaff
Tudo bem cara, então contrapõe!!! Mas ñ em três linhas, pois quem acaba passando por embusteiro és tu.
Por q a gente sempre pode ficar tentado a um trocadilho infame: de Falstaff para falsário é um tapa.
Eugênio
Gostei do texto. A referência ao livro 'O Pensamento Selvagem do Levi's...
Acho que o nú artístico, na Praça da Matriz diz tudo: as estátuas estão como? O cara só quis se integrar à paisagem e não viu maiores problemas já que a justiça é cega e o teatro representa a liberdade de expressão...
Em tempo: só é cego quem não quer ler.
Tóia, por acaso, não há espaço na tua agenda para ensinar um pobre analfabeto intelectual e reles carteiro de poeta, desativado, como eu, a escrever textos "ruinzinhos" como os teus?
Mesmo achando um absurdo que alguém tão incapaz assim tenha tido um único lampejo de criatividade na vida ao sacar e se apropriar de uma marca tão gauche como a que dá nome ao teu blogue, DG, do alto da minha caridade invisível, a única caridade que existe, envio o salva-vidas da minha solidariedade a fim de impedir que tua coerência teórica se afogue no mar do século 21.
Mas não te acostuma. Nem sempre vou estar aqui ou disposto a te salvar de ti mesmo.
Aceita meu conselho: seja mais são, Cristóvão, tenha mais Féil.
O que seria de medíocres como eu se não houvesse o vocábulo "oxímoro"?
Resumindo o teu artigo: leitor, não confunda gentílico "gaúcho" com gentil etílico gaúcho.
Que alívio! Tava com saudade de montar no meu pingo trocadilho e sair a camperear pelas invernadas pampeanas, como nossos irmãos Charruas, Guenoas...
"Esse modelo político-moral está arquivado no Rio Grande, em favor de um padrão inspirado no abigeato e na apropriação indébita do público e do privado."
Perfeito! Um direto no queixo! E parece que o falstaff sentiu o baque.
Brilhante texto Cristóvão. Eu acrescentaria na tua bibliografia, apenas para oferecer uma perspectiva diferente sobre o tema, aquele texto do Borges, "A Poesia Gauchesca", visto que muito da ficção criada em torno dessa figura, o gaúcho, tem sua origem justamente na poesia - e na literatura de um tipo rústico do estilo "capa-e-espada", vide "El Gaucho Martín Fierro". O gaúcho, personagem outrora marginal na história da província, adquiriu matizes estranhos a ele, conferidos por artífices, vejam só, urbanos, que o descaracterizaram. Nenhum problema que as pessoas se interessem por este gênero de ficção gaudéria - no mundo inteiro há clubes, similares aos "CTGs", de aficionados por temas do tipo "Jornada nas Estrelas", por exemplo - o problema é quando esta ficção adquiri o status ideológico que o gauchismo adquiriu.
Excelente texto, que sempre me remete à manipulação semelhante que aconteceu aqui em Sampa, onde a elite separatista, predadora e aristocrata usou o povo para brigar contra a federação e a separação, com a farsa de luta pela constituição e contra a ditadura. Ambas mentiras, porquanto, Vargas ainda representava um governo provisório e a constituição tinha até data para acontecer, como aconteceu.
.
Mentiras e manipulações dos Bentos daí e daqui. Aliás, aqui tinham vários Bentos a saber: Armando Salles de Oliveira, Pedro Toledo, Júlio Prestes, tenentes de 1924 oportunistas, etc.
"Revolução" de 1932 e "Revolução" Farroupilha, ambas fizeram a alegria de ladrões de gado e carreiristas políticos. Pobres povos paulista e riograndense.
armando do prado
Ah, quanto ao livro do ex-professor Cardoso citado pelo Feil, dizem as boas línguas que foi escrito pela professora Rute Cardoso, de quem tive a honra de ser aluno, para que o moço pudesse se doutorar. Coisas de gente de bem.
armando do prado
Concordo com tudo no texto, mas entre homenagear quem lutava pelo império lusitano, centralizador, e declaradamente escravagista, ou alguem que vinha com uma lenga lenga falaciosa de liberdade igualdade e humanidade, melhor homenagear estes últimos.
Mal comparando, os gaúchos são como aquele outro povo que se acha "escolhido por Deus". Fraude!
Eu li o texto, assim que saiu e o achei muito bom. Concordo com o
Eduardo Martinez, o nome do teu blog é genial, concordo, também,
que as fotos são maravilhosas (aguardo as trocas, ansiosamente).
Quanto ao gauchismo, espero que seja uma doença juvenil e, com a chegada da maturidade, passe.
E quanto ao Falstaff, poderia se autodenominar, também, de Charles Foster Kane.
Saudações,
Rita Z.
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