sexta-feira, 18 de junho de 2010
Há maneiras de ser felizes que são simplesmente odiosas
Que atire a primeira pedra quem não tenha manchas de imigração na sua árvore genealógica... assim como na fábula do lobo mau que acusava o inocente cordeiro de escurecer a água do riacho de onde ambos bebiam.
Se tu não emigraste emigrou o teu pai, e se o teu pai não necessitou de mudar de sítio foi porque o teu avô antes não teve outro remédio se não ir, carregando a casa às costas, em busca da comida que a sua própria terra lhe negava.
Muitos portugueses (e quantos espanhóis) morreram afogados no rio Bidasoa quando, pela noite escura, tentavam alcançar a nado a outra margem, onde se dizia começar o paraíso de França. Centenas de milhares de portugueses (e quantos espanhóis) tiveram que se introduzir na culta e civilizada Europa, para lá dos Pirenéus, em condições de trabalho infames e salários indignos.
Os que conseguiram suportar a violência de sempre e as novas privações, os sobreviventes, desorientados no meio de uma sociedade que os desprezava e humilhava, perdidos em idiomas que não podiam entender, foram pouco a pouco construindo, com uma renúncia e um sacrifício quase heróico, moeda a moeda, cêntimo a cêntimo, a fortuna dos seus descendentes.
Alguns desses homens, algumas dessas mulheres, não perderam, e não quiseram perder, a memória do tempo em que padeceram de todos os vexames do trabalho mal remunerado e de todas as amarguras do isolamento social. Que honestos agradecimentos lhe sejam dados por conservar o respeito que deviam ao seu passado.
Muitos outros, a maioria, cortaram as pontes que os uniam àquelas horas sombrias, envergonharam-se de terem sido ignorantes, pobres, e por vezes miseráveis, comportaram-se como se a vida decente só tivesse verdadeiramente começado quando, por fim e num felicíssimo dia, puderam comprar o seu próprio automóvel.
Esses serão os que estarão dispostos a tratar com idêntica crueldade e idêntico desprezo os imigrantes que atravessam esse outro Bidasoa, mais largo e mais fundo que é o Estreito de Gibraltar, onde os afogados abundam e servem de pasto aos peixes, se as marés e o vento não preferirem empurrá-los para a praia até que a guarda-civil apareça e os leve.
Aos sobreviventes dos novos naufrágios, aos que puseram os pés em terra e não foram expulsos, espera-os o eterno calvário da exploração, da intolerância, do racismo, do ódio à pele, da suspeita, do envelhecimento moral.
Aquele que antes foi explorado e que perdeu a memória de o ter sido acabará explorando outro. Aquele que antes foi explorado e finge ter-se esquecido refinará a sua própria capacidade de desprezar. Aquele a quem ontem humilharam humilhará hoje com mais rancor.
E ei-los aqui, todos juntos, atirando pedras a quem chega a esta margem do Bidasoa como se eles nunca tivessem emigrado, ou os seus pais ou os seus avós, como se nunca tivessem sofrido de fome e de desespero, angústia e de medo. Na verdade, há maneiras de ser felizes que são simplesmente odiosas.
José Saramago
Prólogo do livro Moros en la Costa (2001), do jornalista espanhol Juan José Tellez Rubio.
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