sábado, 17 de maio de 2008

Um homem tranqüilo

Ao estender as mãos fora do leito, Pluma ficou surpreso de não encontrar a parede. "Bem, pensou ele, vai ver que as formigas a comeram..." e tornou a dormir.

Pouco depois, sua mulher agarrou-o e sacudiu: "Veja, disse a ele, preguiçoso! Enquanto você se ocupava dormindo nos roubaram a casa." E de fato um céu intacto se estendia por todos os lados. "Ah, não há mais nada a fazer", pensou.

Pouco depois, ouviu-se um ruído. Era um trem que vinha na direção do casal a toda velocidade. "Com a pressa que tem, pensou, seguramente chegará antes de nós", e tornou a dormir.

Depois o frio o despertou. Estava todo coberto de sangue. Alguns pedaços de sua mulher jaziam a seu lado.

"Com o sangue, pensou, sempre surgem um monte de problemas: se o trem não tivesse passado eu estaria bem contente. Mas já que já passou mesmo...", e tornou a dormir.

- Vejamos, disse o juiz, como o senhor explica que sua mulher tenha se acidentado a ponto de que a tenham encontrado partida em oito pedaços, sem que o senhor, que estava a seu lado, fizesse o menor gesto para impedi-lo, sem que sequer se tenha dado conta. Eis o mistério. Aí reside o x da questão.

- Em relação a esse assunto não poderei ajudá-lo, pensou Pluma, e tornou a dormir.

- A execução será realizada amanhã. O acusado quer acrescentar alguma coisa?

- Desculpe-me, disse ele, eu não acompanhei o julgamento.

Henri Michaux (1899-1984)

3 comentários:

  1. Não conhecia, infelizmente, o autor.
    Este conto revela uma primorosa elaboração, síntese e narrativa, dentro dos moldes do realismo fantástico.
    Parece um Cortázar europeu.

    Ricardo Mainieri

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  2. Vejo isso como uma metáfora do imobilismo de certa esquerda...

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