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quarta-feira, 12 de setembro de 2007


Por que o Rio Grande do Sul é assim - IV

A construção da hegemonia castilhista

Para entender a vanguarda positivista-castilhista militante do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), mas sobretudo compreender aquilo que Nabuco (antes de Lênin) sintetizou como o “espírito revolucionário” de uma dada conjuntura ímpar, original e irrepetível, vamos ver o que Florestan Fernandes considera como elementos que não podem faltar no momento do salto revolucionário (e isto vale tanto para o processo burguês, que estamos comentando, quanto para um processo pós-burguês, do qual estamos muito longe, pelo menos com o lulismo no poder e a autodesconstituição petista).

“Em primeiro lugar – anota Florestan –, é preciso que existam certas categorias de homens, capazes de atuar socialmente na mesma direção, com dada intensidade, e com relativa persistência. Em segundo, lugar, é preciso que essas categorias de homens disponham de um mínimo de consciência social, de capacidade de ação conjugada e solidária, e de inconformismo em face do status quo, para poderem lidar, coletivamente, com meios e fins como parte de processos de reconstrução social. Estes impõem, desejem-no ou não os agentes humanos, um complicado amálgama entre interesses sociais imediatos (e por isso mais ou menos claros e impositivos), valores sociais latentes (e por isso imperativos, mas fluídos) e interesses remotos (e por isso essenciais, mas relativamente procrastináveis)” – conclui o sociólogo, na obra “A Revolução Burguesa no Brasil”.

Sem entrar no mérito do ideário positivista-comtiano, que sempre orientou – qual doutrina – Julio de Castilhos e seus companheiros, há que se concordar que a vontade política daquela vanguarda obedecia às exigências de todo o genuíno processo revolucionário que se preze.

O Rio Grande do Sul vivia a crise terminal do modelo escravagista agro-exportador, crise de mão-de-obra escrava (os cafeicultores paulistas vinham inflacionando o preço unitário da força-escrava pelo menos desde a proibição do tráfico, meados do século 19), aumento da divisão social do trabalho, assalariamento progressivo, novos agentes econômicos mais dinâmicos advindos das comunidades imigrantes (onde, por determinação de Pedro 2º , era proibido trabalho escravo), etc. Ora, se de um lado havia uma crise estrutural do sistema dominante, de outro, florescia uma sociedade baseada em novos valores sociais e culturais.

O PRR sentiu, então, a janela de tempo que se descortinava no horizonte histórico do Estado, percebeu politicamente a contradição insanável entre uma ruptura da homogeneidade da aristocracia agrária simultaneamente ao aparecimento de novos tipos de atores sociais e econômicos. O processo revolucionário, portanto, era irrenunciável, inadiável.

Se a conjuntura histórica por si só quase conspirava para o desfecho de síntese, havia ainda três grandes tarefas instrumentais a realizar: 1) fixar um marco jurídico-constitucional para a nova ordem, depois consubstanciado na Constituição autoritária de 1891; 2) uma imprensa partidária aberta à população, consubstanciado no combativo jornal republicano “A Federação” e inúmeros outros pequenos órgãos regionais de grande influência política; 3) uma força militar que sustentasse a nova ordem, consubstanciada na Brigada Militar como força pública estatal e a arregimentação de militantes do PRR como corpos provisórios militarizados para intervenção nos conflitos comuns no período, pelo menos até 1924 (os intendentes municipais funcionavam como chefes políticos e militares).

Adiante veremos cada uma destas estratégias políticas que garantiram a hegemonia da ordem castilhista por quase 40 anos no Rio Grande do Sul.

Foto: detalhe do monumento de simbologia positivista em homenagem a Julio de Castilhos, que está defronte ao Palácio Piratini, sede do Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Obra do conhecido escultor Décio Vilares (1851-1931).


7 comentários:

Anônimo disse...

Caro Cristovão!
Parabéns pela tua capacidade de produzir um texto curto, com início, meio e fim, mas isso pode produzir meios tons onde a luz é necessária. A primeira grande tarefa instrumental, o marco-jurídico, teve uma conseqüência central e inovadora - constituir um Estado burguês. Nesse movimento, precoce em relação a 1930, considerado o marco de fundação do Estado burguês brasileiro, Júlio e seguidores lançaram as bases para a constituição de uma burocracia de tipo racional legal weberiana. Na constituição de 1891 está lançada a idéia do concurso público, o recrutamento independente de crença ou opinião, entre outras. Como era fundamental ter o controle político desse Estado, o que implicava conduzir a cabresto a burocracia, editaram rigorosos regulamentos, nos quais fica perfeitamente configurado o modelo weberiana. Surge a idéia de carreira, promoção, algumas formas de mérito, punição (inclsuive com prisão administrativa)e aposentadoria. Tudo isso no clamor dos tiros e aprofundado ao longos das duas primeiras décadas do século 20. Isso é absolutamente extraordinário pela inovação e ganha relevo se se comparar com o regulamento do Dasp de 1937, considerado como marco inicial da burocracia brasileira. Esse regulamento do Dasp foi copiado das normas editadas pelos positivistas gaúchos, sendo que o Luiz Simões Lopez (primeiro diretor do Dasp) era filho de um positivista de primeira hora. Em resumo - o marco formador da burocracia brasileira nasceu no torrão gaúcho, o que não é pouca coisa.
Deixo aqui minha modesta contribuição e toca o barco que o é blog ótimo, apesar da presença de um pautador, que as vezes nada contribui e só desvia a discussão.

Cristóvão Feil disse...

Obrigado pela contribuição relevante, Jorge. A Constituição de 1891 foi o gatilho para a reação furibunda de 93, e foi o marco legal do processo revolucionário. Mesmo que não houvesse mais nada, por si só a Constituição castilhista já foi importante e definidora das novas regras da relação Estado-sociedade, impondo uma "racionalidade" de fato weberiana. Só 30 e tantos anos depois o Brasil alcançaria parte destas conquistas, e graças a um político que "nasceu" do castilhismo, Getúlio Vargas.

Abraço, Jorge!

Anônimo disse...

Até aqui, sem a colher torta dos salteadores de blogues alheios, o debate está de alto nível, pertinente e dentro do proposto pelo post. Que bom se fosse sempre assim.

Anônimo disse...

Estou curioso pelo final. Quando foi que a parte vencedora do conflito resolveu jogar a toalha, entregar a rapadura e vestir a bombacha e repartir o poder? Quando a FEDERASUL resolveu que a FARSUL podia tocar a política e a alma gaúcha, desde que ela mantivesse o poder econômico? Ei, esse não foi o mesmo acordo de Getúlio com São Paulo em 32 ? Cada um fica com o seu e nós ficamos com o eventual restinho !!
Isso vai explicar porque um Frederico Antunes, um perdido da vida, vem lá da fronteira e sem nenhum trabalho vira presidente da assembléia ?
Será que o transbordamento das lideranças gaúchas pelo Brasil deixou a retaguarda aberta para o avanço do grupo contrário? Ocorreu a diluição e o envelhecimento da tal vanguarda e a sua mensagem não encontrou eco em outras regiões do Brasil sem vocação para a modernidade e a autonomia e compromissadas com a inserção subalterna?
E isso terminaria por fim com o golpe depois do golpe, a eleição de Fernando Primeiro, fecho do ciclo do projeto autóctone? Bom, meu palpite era esse.

Cristóvão Feil disse...

Sim, prezado anônimo, a parte final seria essa. Mas tem interregnos aí no meio. E sinapses políticas. Faço outra provocação: por que a burguesia nunca engoliu Getúlio? Em SP eles nem disfarçam, aqui no RS ainda fazem uma cara amarela, mas também não o engolem. Nunca engoliram Castilhos, nem Borges, por que haveriam de engolir o dr. Getúlio? O cara mais sincero da República é o professor FHC, ele já no discurso de posse disse que esse negócio de Varguismo iria acabar no seu governo. Por que então os pais fundadores da burguesia do Brasil (esse "do Brasil" já explica um pouco) são tão rejeitados pela sua prole. Nos EUA aconteceu o contrário. Enfim...

Claudinha disse...

Enfim, outra "herança" positivista relativizada ou ignorada por parte da elite política gaúcha - aquela de coloração mais vermelha - diz respeito a uma das tarefas instrumentais propugnadas pelo PRR:
"2) uma imprensa partidária aberta à população, consubstanciado no combativo jornal republicano “A Federação” e inúmeros outros pequenos órgãos regionais de grande influência política;".
Ainda que eu não defenda um jornal de partido político, quando defendo as teses de uma comunicação democrática, impressiona o fato de que, já no século 19, havia uma preocupação em criar instrumentos de mobilização da opinião pública na difusão de idéias políticas.
Esta é uma lição que tem gente que não aprendeu, recusa-se a entender e ainda desdenha de quem cobra a ausência de um espaço democrático, onde se possa dizer a sua palavra, manifestar o seu pensamento! Políticos que acreditam que podem ganhar espaço dentro da mídia corporativa e, pior, acreditam que a mídia que aí está é democrática!
Bueno, estou acompanhando estes sueltos com redobrado interesse. Jamais tive contato com a história do RS como agora. E pensar que convivi com o prof. Felizardo, quando eu era criança... :-)

Anônimo disse...

Fui aluno do Joaquim Felizardo. Foi ele que me ensinou o significado dos símbolos positivistas na estátua do Júlio de Castilhos da foto. Aliás, ele tinha uma palestra sobre isso, ficava horas falando sobre o tema e sobre o "Luís Carlos", como chamava o Prestes, que era primo dele. O Felizardo foi um figuraço, muito divertido e ótimo professor!

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