O liberalismo se
transformou em um novo totalitarismo
Entrevista
com Dany-Robert
Dufour, antropólogo francês, estudioso do ultraliberalismo e suas
consequências dramáticas.
Alguns já o vêem no
ocaso, outros a ponto de cair no abismo, ou em plena derrocada, ou em
vias de extinção. Outros analistas prevêm o contrário, que mesmo
que o liberalismo atravessa uma séria crise, seu modelo está longe,
muito longe do epílogo. Apesar das crises e suas fundas
consequências, o liberalismo segue em pé, produzindo seu pedaço
insensato de benefícios e desigualdades, suas políticas de ajuste,
sua irrenunciável impunidade. No entanto, mesmo que ainda siga vivo,
a crise tem deixado como nunca a nu os seus mecanismos perversos e,
sobretudo, colocou no centro da cena não só o sistema econômico,
mas o indivíduo que o liberalismo acabou por criar: hedonista,
egoísta, consumista, frívolo, obcecado por objetos e pela imagem
fashion que emana destes objetos.
A trilogia da
modernidade liberal é muito simples: produzir, consumir e enriquecer.
Em seu último livro,
“O indivíduo que vem depois do neoliberalismo” [sem tradução
para o português, ainda], o filósofo francês Dany-Robert Dufour
(foto) propõe uma pergunta que poucos se fazem: “Como será o
indivíduo que surgirá depois dos cataclismos e das intervenções
globais do liberalismo?”
O liberalismo, que
se apresentou como salvador da humanidade, terminou levando o ser
humano a um caminho sem saída. Você projeta o seu fim, e se
pergunta que tipo de ser humano surgirá depois do ultraliberalismo.
No
século passado conhecemos dois grandes caminhos sem saída
histórica: o nazismo e o stalinismo. De alguma maneira, e entre
parênteses, depois da Segunda
Guerra Mundial fomos libertados desses dois caminhos sem saída pelo
liberalismo. Mas essa libertação acabou sendo uma nova alienação.
Nas suas formas atuais, quer dizer, ultra e neoliberal, o liberalismo
se molda como um novo totalitarismo porque pretende administrar o
conjunto das relações sociais. Nada deve escapar da ditadura dos
mercados e ele converte o liberalismo em um novo totalitarismo que
substitui os dois anteriores. É, então, um novo caminho sem saída
histórica. O liberalismo só fez explorar o ser humano. O
historiador húngaro Karl Polanyi, em um livro publicado depois da
Segunda Guerra Mundial demonstrou como, antes, a economia estava
incluída em uma série de relações: as sociais, as políticas, as
culturais, etc. Mas com a irrupção do liberalismo a economia saiu
desse círculo de relações para converter-se no ente que procura
dominar todos os demais. Desta forma, todas as economias humanas
submetem-se à lei liberal, quer dizer, à lei do aproveitamento onde
tudo deve ser rentável, incluídas as atividades que antes não
estavam sob o mandato do rentável. Por exemplo, neste momento você
e eu estamos falando mas não estamos submetidos à rentabilidade,
mas sim para produzir sentido. Neste momento estamos em uma economia
discursiva. Mas hoje até a economia discursiva está submetida a
"quem ganha mais". Cada uma das economias humanas está sob a mesma lógica: a economia psíquica, a economia simbólica, a
economia política, daí ao aniquilamento da política. O político
só existe para obedecer ao econômico. A crise que atravessa a
Europa mostra que quanto mais ela se aprofunda, mais a política
deixa a gestão sob o controle da economia. A política renunciou
ante a economia e esta tomou o poder. Os circuitos econômicos e
financeiros se apoderaram da política. Por conseguinte, a crise é
geral.
O
título do seu livro, "O indivíduo que vem depois do
liberalismo", implica a dupla ideia de uma frase triunfal e do
fim do liberalismo.
Paradoxalmente,
no momento de seu triunfo absoluto o liberalismo dá sinais de
cansaço. Nos damos conta de que nada funciona e as pessoas vão
tomando consciência deste colapso e têm uma reação de
incredulidade. Os mercados se propõem a ser panaceia para todos os
males. Você tem um problema? Pois então procure o Mercado e este
lhe concederá a riqueza absoluta e a solução dos problemas. Mas
agora nos damos conta que o Mercado acarreta devastações. Agora
vemos do quanto esse remédio que deveria propiciar riqueza infinita
acaba nos trazendo miséria, pobreza e destruição. Desde sempre, o
capitalismo produz a riqueza global mas pessimamente dividida.
Sabemos que há 20, 30 anos as desigualdades têm aumentado no
planeta inteiro. A riqueza global do capitalismo subtrai direitos de
milhões de indivíduos: os direitos sociais, o direito à educação,
à saúde, em suma, todos esses direitos conquistados com as lutas
sociais estão sendo engolidos pelo liberalismo. O liberalismo foi
como uma religião cheia de promessas. Nos prometeu a riqueza
infinita graças ao seu operador, o Divino Mercado. Mas nada cumpriu.
Na
sua crítica filosófica ao liberalismo você põe em relevo um dos
seus danos principais causado pelo pensamento liberal: os indivíduos
estão submetidos aos objetos, não a seus semelhantes, ao outro. A
relação em si, a sensualidade, foi deslocada pelo objeto.
As
relações entre os indivíduos ficam em segundo plano. O primeiro é
ocupado pela relação com o objeto. Essa é a lógica de mercado: o
mercado pode a cada momento indicar-nos o objeto capaz de satisfazer
nossos apetites. Pode ser um objeto manufaturado, um serviço e até
um fantasma sob medida construído pelas indústrias culturais.
Estamos em um sistema de relações que privilegia o objeto ao invés
do sujeito. Isso cria uma nova alienação, uma relação viciada com
os objetos. Esse novo totalitarismo que é o liberalismo, põem em
mãos dos indivíduos os elementos para que se oprimam a si mesmos,
através dos objetos. O liberalismo nos deixa a liberdade de nos
alienarmos a nós mesmos.
Você
localiza o princípio da crise nos anos '80 através da restauração
do que você mesmo chama de relato de Adam Smith. Você cita uma de
suas frases mais espantosas: para escravizar a um homem há que
dirigir-se ao seu egoísmo, e não à sua humanidade.
Adam
Smith remonta ao século 18 e a sua moral egoísta se expandiu um
século e meio depois com a globalização do mercado em todo o
mundo. De fato, Smith demorou muito, porque houve outra mensagem
paralela, outro Século das Luzes, que foi o trancendentalismo
[idealismo. Nota do tradutor] alemão. Ao contrário das Luzes de Smith, os alemães
propunham a regulação moral, a regulação trancendental. Essa
regulação podia manifestar-se na vida prática, através da
construção de formas como as do Estado a fim de regular os
interesses privados. A partir do Século das Luzes há duas forças
que se manifestam: Adam Smith e Kant. Estes dois campos filosóficos
coexistiram de maneira conflitiva ao longo da modernidade, quer
dizer, através de dois séculos. Mas, em algum momento, o
transcendentalismo alemão desmoronou e deixou lugar ao liberalismo
inglês, que por sua vez passou a assumir a forma ultraliberal. Se
pode datar esse fenômeno a partir do princípio dos anos '80. Há
inclusive uma marca histórica que remonta ao momento em que Ronald
Reagan e Margaret Thatcher na Grã-Bretanha chegam ao poder e
instalam a liberdade econômica sem regulação alguma. Essa ausência
de regulação destruiu imediatamente as convenções sociais, quer
dizer, o pacto entre os indivíduos.
Daí
advém a trilogia"produzir, consumir, enriquecer". Você
chama a essa trilogia de pleonexia [desejo
exagerado de ter posses, grande avidez material. Nota do tradutor].
O
termo pleonexia eu encontrei na República de Platão, e quer dizer
"sempre ter mais". A República grega, a Polis, se
construiu sobre a proibição da pleonexia. Pode-se dizer então que,
até o século 18, uma parte do Ocidente funcionou na base dessa
proibição, e se libertou dela nos anos '80. A partir daí, foi
liberada a avidez mundial, a avidez dos mercados, a avidez dos
banqueiros. Recorde o discurso pronunciado por Alan Greenspan (o
ex-presidente do Federal Reserve, o banco central dos EUA) ante a
Comissão do Congresso norteamericano depois da crise de 2008.
Greenspan disse: "Eu pensava que a avidez dos banqueiros era a
melhor regulação possível. Mas me dou conta que isso não funciona
mais, e não sei por quê". Greenspan confessou dessa maneira
que o que orienta as coisas é a liberação da pleonexia. E já
vemos agora aonde tudo isso nos conduziu.
Chegamos
no momento do depois, ao hipotético 'ser humano de depois do
liberalismo'. Você o vê sob a condição de um indivíduo simpático.
Que sentido tem o termo simpático, neste contexto?
Ninguém
é bom ao nascer, como pensava Rousseau, nem tampouco mau, como
pensava Hobbes. O que podemos fazer é ajudar as pessoas a serem simpáticas, quer dizer, a não pensar só em si mesmas, e a pensar
que para viver com o próximo há que contar com ele, o próximo. O
outro está em mim, as imagens dos outros estão em mim, e me
constituem como sujeito. A ideia mesma de um individuo egoísta é um
sem-sentido, porque obriga a que nos esqueçamos de que o indivíduo
está constituído por partes do outro. E quando falo de um indivíduo
simpático não emprego o termo em sua acepção mais trivial,
digamos alguém simplesmente simpático. Não. Se trata do sentido
que tinha a palavra no século 18, onde a simpatia era a presença do
outro em mim. Necessito, então, da presença do outro em mim e o
outro necessita de minha presença nele para que possamos constituir
um espaço onde cada um seja um indivíduo aberto ao outro. Eu cuido
do outro como ele cuida de mim. Isso é um indivíduo simpático.
Vamos
com a simpatia, mas sobre que bases se constitui o indivíduo que vem
depois do liberalismo? A razão, a religião, o esporte, o ócio, a
solidariedade, outra ideia de mercado?
Neste
livro fiz um inventário sobre relatos antigos: o relato do logos
[consciência cósmica em Heráclito. Nota do tradutor.], da evasão da alma dos gregos,
o relato sobre a consideração do outro nos monoteísmos. Me dei
conta de que em ambos relatos havia coisas interessantes e também
aterradoras. Por exemplo, a opressão das mulheres no patriarcado
monoteísta equivale à opressão da metade da humanidade. Acaso
queremos repetir essa experiência? Não, certamente. Outro exemplo:
no logos, para que haja uma classe de homens livres na sociedade é
preciso que haja uma classe oprimida e escravizada. Queremos repetir
isso? Não. Refundar nossa civilização depois dos três caminhos
sem saída que foram o nazismo, os stalinismo, e o liberalismo requer
uma fundação sobre bases sólidas. Por isso levei a cabo o
inventário, para ver o que poderíamos recuperar e o que não
poderíamos recuperar, quanto do passado podia servir-nos e quanto
não podia servir-nos. A segunda consideração poderia ajudar o
indivíduo a ser simpático antes que egoísta. É preciso
reconstruir um meio onde se possa ser simpático e não egoísta.
Neste contexto, a ideia de reconstrução do político, de uma nova
forma de Estado que não fique dedicado a conservar os interesses
econômicos, e sim que preserve os interesses coletivos, é central.
Qual é então o grande Relato que podería nos salvar?
Temos
deixado à beira do caminho os grandes relatos anteriores e
acreditamos cada vez menos no grande relato do mercado. Estamos a
espera de algo que unifique o indivíduo, quer dizer, uma grande
narrativa. Eu proponho o relato de um indivíduo que deixou de ser
egoísta, mas que não seja o indivíduo coletivo do stalinismo, nem
tampouco o indivíduo afogado na raça que se crê superior, como no
nazismo e no fascismo. Se trata de um relato alternativo a tudo isso,
de um relato que persiste no fundo da civilização. Creio que o
valor da civilização ocidental reside na ênfase na individuação,
quer dizer, na ideia da criação de um indivíduo capaz de pensar e
agir por si mesmo. Não se pode esquecer a noção de indívíduo,
mas é preciso reconstruir essa ideia. Contrariamente ao que se diz,
não creio que nossas sociedades sejam individualistas, não. Nossas
sociedades são lamentavelmente egoístas. Isto me faz pensar que o
individuo como tal tem uma boa margem existencial, que há muitas
coisas dele que não conhecemos. Temos que fazer existir o indivíduo
fora dos valores de mercado. O indivíduo do stalinismo foi
dissolvido na massa do coletivismo, o indivíduo do nazismo e do
fascismo foi dissolvido na raça, o indivíduo do liberalismo foi
dissolvido no egoísmo. O indivíduo liberal é um escravo de suas
paixões e pulsões. Devemos superar este caminho liberal sem saída
para recriar um indivíduo aberto ao outro, capaz de realizar-se
totalmente. Há textos filosóficos de Karl Marx, que não são muito
conhecidos, e nos quais Marx queria a realização total do indivíduo
fora dos circuitos mercantis: no amor, na realização com os outros,
na amizade, na arte. Poder criar o máximo a partir das disposições
de cada um. Talvez tivéssemos que recuperar esse relato de Marx
filósofo e esquecer o do Marx marxista.
Publicado
no diário portenho Página
12,
edição de hoje, 13 de fevereiro de 2012.
A entrevista foi concedida ao jornalista Eduardo Febbro. Tradução
de Cristóvão Feil.
8 comentários:
"simpático" não poderia ser melhor traduzido/entendido por "empático" ??
Bela entrevista.
Maurício.
Este liberalismo "triunfante" de Adam Smithn infligiu desgraças, miséria e tragédias ao Terceiro Mundo desde sempre. Mas, enquanto as mazelas do liberalismo propriciavam riquezas aos europeus, ele jamais foi criticado( exceto, pelos marxistas é óbvio). Agora que o desevolvimento doentio do neoliberalismo está despejando sobre a Europa as mesmas desgraças que os povos do Terceiro Mundo já conhecem há séculos ele não serve mais. Nada como um dia depois do outro.
A primeira medida séria para golpear o neoliberalismo é acabar com a independência dos Bancos Centrais, submetê-los ao político. ao Estado, a toda sociedade.
Mauricio, o que o autor quer dizer é simpatia mesmo. Empatia está correlacionado mas é outro significado.
Abç.
CF
Bela entrevista, obrigado pela tradução. Não conhecia esse autor. Seria interessante traçar algumas comparações com Habermas, e suas ideias sobre a "colonização do mundo da vida" pelo que ele chama de "racionalidade instrumental".
"Bagual" a entrevista, meu caro Feil.
Stalim enterrou para sempre qualquer tentativa de se ter o interesse coletivo em primeiro lugar, o que seria o certo. Só de falar em interresse coletivo qualquer pessoa que conhece a história das tentativas de implantação do socialismo e de outras doutrinas como a nazista, e todas as suas atrocidades, vai reagir contra. Só um doido sem amor por si própio e pelos semelhantes vai querer viver sob as garras de um Stalim, tal qual não vão aceitar a tutela de um Hitler. Marx incentivou o surgimento do individuo não egoista e solidário mas também fomentou que o indivídou sádico,pernóstico e violento, sem ter nada nem ningúem para dete-lo mostrar toda a maldade que pode se esconder na alma humana. Da busca pelo novo homem no século passado a síntese do que seria, para aqueles que acreditam em Deus, o Demônio foi quem surgio.
Seu blog está sem link para a pagina inicial.
A própria palavra "liberalismo" vai se tornando impopular na europa, assim como já acontece na américa latina. Na alemanha o partido liberal que teve boa votacao em 2009 (mesmo depois da crise) tá perigando sumir do parlamento, por nao alcancar os 5% mínimos de votos.
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